quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Obra: Amor de Perdição

Autor: Camilo Castelo Branco



Prefácio da segunda edição


Nas Memórias do Cárcere, referindo-me ao romance que novamente se


imprime, escrevi estas linhas:

"O romance, escrito em seguimento daquele, (O Romance de um Homem Rico)

foi o Amor de Perdição. Desde menino, ouvia eu contar a triste história de meu

tio paterno Simão António Botelho. Minha tia, irmã dele, solicitada por minha

curiosidade, estava sempre pronta a repetir o facto aligado à sua mocidade.

Lembrou-me naturalmente, na cadeia, muitas vezes, meu tio, que ali deveria

estar inscrito no livro das entradas no cárcere e no das saídas para o degredo.

Folheei os livros desde os de 1800, e achei a notícia com pouca fadiga, e

alvoroços de contentamento, como se em minha alçada estivesse adornar-lhe

a memória como recompensa das suas trágicas e afrontosas dores em vida tão

breve. Sabia eu que em casa de minha irmã estavam acantoados uns maços

de papéis antigos, tendentes a esclarecer a nebulosa história de meu tio. Pedi

aos contemporâneos que o conheceram notícias e miudezas, a fim de entrar de

consciência naquele trabalho. Escrevi o romance em quinze dias, os mais

atormentados de minha vida. Tão horrorizada tenho deles a memória, que

nunca mais abrirei o Amor de Perdição, nem lhe passarei a lima sobre os

defeitos nas edições futuras, se é que não saiu tolhiço incorrigível da primeira.

Não sei se lá digo que meu tio Simão chorava, e menos sei se o leitor chorou

com ele. De mim lhe juro que..."

Vão passados quase dois anos, depois que protestei não mais abrir este

romance. No decurso de dois anos tive de afrontar-me com uns infortúnios

menos vulgares que a privação da liberdade, e esqueci os horrores dos outros,

a ponto de os recordar sem espanto, e simplesmente como fuzis

indispensáveis nesta minha cadeia, em que já me vou retorcendo e

saboreando com infernal deleitação. Abri o livro, como se o tivesse escrito nos

dias mais festivos da minha mocidade; se bem que eu falo em dias de

mocidade por me dizer a minha certidão de idade que eu já fui moço; que, no

tocante a festas de juventude, estou agora esperando que elas venham no

Outono, e é de crer que venham, acamaradas com o reumatismo e gota.

Este livro, cujo êxito se me antolhava mau, quando eu o ia escrevendo, teve

uma recepção de primazia sobre todos os seus irmãos. Movia-me à

desconfiança o ser ele triste, sem interpolação de risos, sombrio, e rematado

por catástrofe de confranger o ânimo dos leitores, que se interessam na boa

sorte de uns, e no castigo de outros personagens. Em honra e louvor das

pessoas que estimaram o meu livro, confessarei agradàvelmente que julguei

mal delas. Não aprovo a qualificação; mas a crítica escrita conformou-se com a

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opinião da maioria, que antepõe o Amor de Perdição ao Romance de um

Homem Rico e às Estrelas Propícias.

É grande parte neste favorável, embora insustentável, juízo, a rapidez das

peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo,

ausência de divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e desartificio das

locuções. Isto, enquanto a mim, não se estribar em outras recomendações

mais sólidas deve ter uma voga muito pouco duradoura.

Estou quase convencido de que o romance, tendendo a apelar da iníqua

sentença que o condena a fulgir e apagar-se, tem de firmar sua duração em

alguma espécie de utilidade, tal como o estudo da alma, ou a pureza do dizer.

E dou mais pelo segundo merecimento; que a alma está sobejamente

estudada e desvelada nas literaturas antigas, em nome e por amor das quais

muita gente abomina o romance moderno, e jura morrer sem ter lido o melhor

do mais apregoado autor. Dou-me por suspeito nesta questão. Graças a Deus,

ainda não escrevi duas linhas a meu favor, nem sequer nas locais do

jornalismo. Até escrupulizo em dizer que devem ler-se romances, não vão

cuidar que eu recomendo os meus.

É certo que tenho querido imprimir em alguns de meus livros o cunho da

utilidade com o valor da linguagem sã e ajeitada à expressão de ideias, que

pareciam estranhas, como de feito eram, e não se nos deparam nos escritos

dos Sousas, Lucenas e Bernardes. Em verdade, foi isto mirar muito longe com

vista muito curta; assim mesmo, fiz o que pude; e neste livro direi que fiz

menos do que podia. Nos quinze atormentados dias em que o escrevi, faleceume

o vagar e contenção que requer o acepilhar e brunir períodos. O que eu

queria era afogar as horas, e afogar talvez a necessidade de vender o meu

tempo, as minhas meditações silenciosas, e o direito de me espreguiçar como

toda a gente, e o prazer ainda de ser tão lustroso na linguagem, quanto, em

diversas circunstâncias, podia ser.

O que então não fiz, também agora o não faço, senão em pouquíssimo e muito

de corrida. O livro agradou como está. Seria desacerto e ingratidão demudar

sensivelmente, quer na essência, quer na compostura, o que, tal qual é, foi

bem recebido.

Porto.--Setembro de 1863

CAMILO CASTELO BRANCO

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Prefácio da quinta edição

Publiquei, há vinte e dois anos, o romance Onde Está a Felicidade?--Pouco

depois, Alexandre Herculano, republicando as Lendas e Narrativas, escrevia na

Advertência: "...Nestes quinze ou vinte anos, criou-se uma literatura, e pode

dizer-se que não há ano que não lhe traga um progresso. Desde as Lendas e

Narrativas até o livro Onde Está a Felicidade? que vasto espaço transposto?"

Se comparo o Amor de Perdição, cuja 5.a edição me parece um êxito

fenomenal e extralusitano, com O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio,

confesso, voluntàriamente resignado, que para o esplendor destes dois livros

foi preciso que a Arte se ataviasse dos primores lavrados no transcurso de

dezasseis anos. O Amor de Perdição, visto à luz elétrica do criticismo moderno,

é um romance romântico, declamatório, com bastantes aleijões líricos, e umas

idéias celeradas que chegam a tocar no desaforo do sentimentalismo. Eu não

cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência de não devassar

alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença de

suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu

quarto de banho. Dizem, porém, que o Amor de Perdição fez chorar. Mau foi

isso. Mas, agora, como indenização, faz rir: tornou-se cómico pela seriedade

antiga, pelo raposinho que lhe deixou o ranço das velhas histórias do Trancoso

e do padre Teodoro de Almeida.

E por isso mesmo se reimprime. O bom senso público relê isto, compara com

aquilo, e vinga-se barrufando com frouxos de riso realista as páginas que há

dez anos aljofarava com lágrimas românticas.

Faz-me tristeza pensar que eu floresci nesta futilidade da novela, quando as

dores da alma podiam ser descritas sem grande desaire da gramática e da

decência. Usava-se então a retórica de preferência ao calão. O escritor

antepunha a freqüência de Quintiliano à do Colete-encarnado.. A gente

imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes

correlativas. Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje com os punhos

arregaçados para espremer o pus de muitas escrófulas à face do leitor!

Naquele tempo, enflorava-se a pástula; agora, a carne com vareja pendura-se

na escápula e vende-se bem, porque muita gente não desgosta de se narcisar

num espelho fiel.

Pois que estou a dobrar o cabo tormentório da morte, já não verei onde vai

desaguar este enxurro que rola no bojo a Idéia Novíssima. Como a

honestidade é a alma da vida civil, e o decoro é o nó dos liames que atam a

sociedade, lembra-me se vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por

efeito de uma grande evolução-rigolboche. A lógica diz isto; mas a Providência,

que usa mais da metafísica que da lógica, provavelmente fará outra coisa. Se,

por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XX, talvez

me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica, e

esta 5.a edição do Amor de Perdição quase esgotada.

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S. Miguel de Seide,

8 de Fevereiro de 1879

CAMILO CASTELO BRANCO

Amor de Perdição

Camilo Castelo Branco

AO

ILMO. E EXMO. SR.

ANTÔNIO MARIA DE FONTES PEREIRA DE MELO

DEDICA

O AUTOR

Ilmo. e Exmo. Sr.

Há de pensar muita gente que V. Exa. não dá valor algum a este livro,

que a minha gratidão lhe dedica. porque muita gente está persuadida

que ministros do Estado não lêem novelas. É um colega de V. Exa.

discorrer no parlamento acerca de caminhos de ferro - Com tanto

engenho o fazia, de tantas flores matizara aquela matéria. que me

deleitou ouvi-lo. Na noite desse dia, encontrei o colega de V. Exa. a ler

"Fanny", aquela "Fanny" que sabia tanto de caminhos de ferro como eu.

Que V. Exa. tem romances na sua biblioteca, é convicção minha. Que lá

tem alguns, que não leu, porque o tempo lhe falece e outros porque não

merecem tempo, também o creio. Dê V. Exa., no lote dos segundos, um

lugar a este livro. e terá assim V. Exa. significado que o recebe e

aprecia, por levar em si o nome do mais agradecido e respeitador criado

de V. Exa..

Na cadeia da Relação do Porto,

aos 24 de setembro de 1861.

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CAMILO CASTELO BRANCO.

INTRODUÇÃO

Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias

da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805,

a folhas 232, o seguinte:

Simão Antônio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e

estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e

assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito

anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa

Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos

castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul,

colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que

assinei - Filipe Moreira Dias.

A margem esquerda deste assento está escrito:

Foi para a Índia em 17 de março de 1807.

Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o

degredo de um moço de dezoito anos lhe há de fazer dó.

Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As

louçanias do coração que ainda não sonha em frutos, e todo se

embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor daquela idade!

A passagem do seio da família, dos braços de mãe, dos beijos das irmãs

para as carícias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor

da mesma sazão e dos mesmos aromas, e à mesma hora da vida!

Dezoito anos!... E degredado da pátria, do amor e da família! Nunca

mais o céu de Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem

reabilitação, nem dignidade, nem um amigo!... É triste!

O leitor decerto se compungiria; e a leitora, se lhe dissessem em menos

de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria!

Amou, perdeu-se, e morreu amando.

É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a

criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por vezes

traz consigo do céu um reflexo da divina misericórdia?! Essa, a minha

leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe

dissessem que o pobre moço perdera honra, reabilitação, pátria,

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liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o

despertou do seu dormir de inocentes desejos?!

Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto

que me causaram aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com

amargura e respeito e, ao mesmo tempo, ódio. Ódio, sim... A tempo

vereão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora melhor abrir mão

desde já de uma história que me pode acarear enojos dos frios

julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa

virtude de homens, feitos bárbaros, em nome da sua honra.

I

Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de

linhagem e um dos mais antigos solarengos de Vila-Real de Trás-os-

Montes, era em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano

casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da

Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha dum capitão de cavalos, neta de

outro Antônio de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tem notável

por sua jerarquia, como por um, naquele tempo, precioso livro acerca

da Arte de Guerra.

Dez anos de enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o bacharel

provinciano. Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I

minguavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho era extremamente feio.

Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda,

faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres dele não excediam a trinta mil

cruzados em propriedades no Douro. Os dotes de espírito não o

recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência, e granjeara

entre os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de "brocas", com

que ainda hoje os seus descendentes em Vila-Real são conhecidos. Bem

ou mal derivado, o epíteto Brocas vem de broa. Entenderam os

acadêmicos que a rudeza do seu condiscípulo procedia de muito pão de

milho que ele digeria na sua terra.

Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era

excelente flautista; foi a primeira flauta do seu tempo; e a tocar flauta

se sustentou dois anos em Coimbra, durante os quais seu pai lhe

suspendeu as mesadas, porque os rendimentos da casa não bastavam a

livrar outro filho de um crime de morte (1).

Formara-se Domingos Botelho em 1767, e fora a Lisboa ler no

Desembargo do Paço, iniciação banal dos que aspiravam à carreira da

magistratura. Já Fernão Botelho, pai do bacharel, fora bem aceite em

Lisboa, e mormente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe teve a cabeça

em risco, na tentativa regicida de 1758. O provinciano saiu das

masmorras da Junqueira ilibado da infamante nódoa, e até benquisto do

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conde de Oeiras, porque tomara parte na prova que este fizera do

primor de sua geneologia sobre a dos Pintos Coelhos, do Bomjardim do

Porto: pleito ridículo, mas estrondoso, movido pela recusa que o fidalgo

portuense fizera de sua filha ao filho de Sebastião José de Carvalho.

As artes como que o bacharel flautista vingou insinuar-se na estima de

D. Maria I e Pedro III não as sei eu. É tradição que o homem fazia rir a

rainha com as suas facécias, e por ventura com os trejeitos de que

tirava o melhor do seu espírito. O certo é que Domingos Botelho

freqüentava o paço, e recebia do bolsinho da soberana uma farta

pensão. com a qual o aspirante a juiz de fora se esqueceu de si, do

futuro e do ministro da justiça, que, muito rogado, fiara das suas letras

o encargo de juiz de fora de Cascais.

Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço. não poetando como

Luís de Camões ou Bernardim Ribeiro; mas namorando na sua prosa

provinciana, e captando a bem-querença da rainha para amolecer as

durezas da dama. Devia de ser, afinal, feliz "doutor bexiga" - que assim

era na corte conhecido - para se não desconcertar a discórdia em que

andam rixados o talento e a felicidade. Domingos Botelho casou com D.

Rita Preciosa. Rita era uma formosura, que ainda aos cinqüenta anos se

podia prezar de o ser. E não tinha outro dote. se não é dote uma série

de avoengos, uns bispos, outros generais, e entre estes o que morrera

frigido em caldeirão de não sei que terra da mourisma, glória, na

verdade, um pouco ardente. mas de tal monta que os descendentes do

general frito se assinaram Caldeirões.

A dama do paço não foi ditosa com o marido. Molestavam-na saudades

da corte, das pompas das câmaras reais. e dos amores de sua feição e

malde, que imolou ao capricho da rainha. Este desgostoso viver, porém,

não empreceu que se reproduzissem em dois filhos e três meninas. O

mais velho era Manuel, o segundo Simão; das meninas uma era Maria, a

segunda Ana e a última tinha o nome de sua mãe, e alguns traços de

beleza dela,

O Juiz de fora de Cascais, solicitando lugar de mais graduado banco,

demorava em Lisboa, na freguesia da Ajuda. em 1784. Neste ano é que

nasceu Simão, o penúltimo dos seus filhos. Conseguiu ele, sempre

balanceado da fortuna,. transferência para Vila-Real, sua ambição

suprema.

A distância duma légua de Vila-Real estava a nobreza da vila esperando

o seu conterrâneo. Cada família tinha a sua liteira com o brasão da

casa. A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada no feitio, e as

librés dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam na

comitiva.

D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua

grande luneta de oiro, e disse:

- Ó Meneses, aquilo que é?

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- São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.

- Em que século estamos nós nesta montanha? - tornou dama do paço.

- Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.

- Ah! sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze...

O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara

grandemente.

Fernão Botelho, pai do juiz de fora, saiu à frente do préstito para dar a

mão à nora, que apeava da liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes

de ver a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as fivelas de

aço, e a bolsa do rabicho. Dizia ela depois que os fidalgos de Vila-Real

eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes de entrar

na avoenga liteira de seu marido, perguntou, com a mais refalsada

seriedade, se não haveria risco em ir dentro daquela antigüidade.

Fernão Botelho asseverou a sua nora que a sua liteira não tinha ainda

cem anos, e que os machos não excediam a trinta.

O modo altivo como ela recebeu as cortesias da nobreza - velha

nobreza, que para ali viera em tempo de D. Deniz, fundador da vila - fez

que o mais novo do préstito, que ainda vivia há doze anos, me dissesse

a mim: "Sabíamos que ela era dama da Senhora D. Maria I; porém, da

soberba com que nos tratou ficamos pensando que seria ela a própria

rainha". Repicaram os sinos da terra quando a comitiva assomou à

Senhora de Almudena. D. Rita disse ao marido que a recepção dos sinos

era a mais estrondosa e barata.

Apearam à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço

relanceou os olhos pela fachada do edifício, e disse de si para si: "É uma

bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Sintra, na Bemposta e

Queluz".

Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha medo de ser

devorada das ratazanas; que aquela casa era um covil de feras; que os

tetos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao inverno;

que os preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de

frio uma esposa delicada e afeita às almofadas do palácio dos reis,

Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e

começou a fábrica dum palacete. Escassamente lhe chegavam os

recursos para os alicerces: escreveu à rainha, e obteve generoso

subsídio com que ultimou a casa. As varandas das janelas foram a

última dádiva que a real viúva fez à sua dama. Quer-nos parecer que a

dádiva é um testemunho, até agora inédito, da demência da Senhora D.

Maria I.

Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas; D.

Rita, porém, teimara que no escudo se esquarteassem também as suas;

mas era tarde, porque já a obra tinha vindo do escultor, e o magistrado

não podia com segunda despesa, nem queria desgostar seu pai,

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orgulhoso de seu brasão. Resultou daqui ficar a casa sem armas e D.

Rita vitoriosa (2).

O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se

até aos grandes da província, ou antes houve por bem levantá-los até

ela. D. Rita tinha uma corte de primos, uns que se contentavam de

serem primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais

audacioso não ousava fitá-la de rosto, quando ela o remirava com a

luneta, em jeito de tanta altivez e zombaria, que não será estranha

figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante sentinela

da sua virtude.

Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos próprios

para cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o

ciúme; mas sufocava os suspiros, receando que Rita se desse por

injuriada da suspeita. E razão era que se ofendesse. A neta do general

frígido no caldeirão sarrareno ria dos primos, que, por amor dela,

erriçavam e empoavam as cabeleiras com desgracioso esmero, e

cavaleavam estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo que

os picadores da província não desconheciam as graças hípicas do

marquês de Marialva.

Não o cuidava assim, porém, o juiz de fora, O intriguista que lhe trazia o

espírito em ânsias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e

conhecia Rita cada vez mais em flor, e mais enfadada no trato íntimo.

Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de amor sem quebra entre

o esposo disforme e a esposa linda, lhe ocorria. Um só lhe mortificava a

memória, e esse, com quanto fosse da fábula, era-lhe avesso, e vinha a

ser o casamento de Vênus e Vulcano. Lembravam-lhe as redes que o

ferreiro coxo fabricara para apanhar os deuses adúlteros, e assombravase

da paciência daquele marido. Entre si, dizia ele, que, erguido o véu

da perfídia, nem se queixaria a Júpiter, nem armaria ratoeiras aos

primos. A par do bacamarte de Luís Botelho, que varara em terra o

alfares, estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de fora era

entendido com muito superior inteligência à que revelava na

compreensão do Digesto e das Ordenações do Reino.

Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de fora

empenhara os seus amigos na transferência, e conseguiu mais do que

ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou

saudades em Vila-Real, e duradoura memória da sua soberba,

formosura e graças de espírito. O marido também deixou anedotas que

ainda agora se repetem. Duas contarei somente para não enfadar.

Acontecera um lavrador mandar-lhe o presente duma vitela, e mandar

com ela a vaca, para se não desgarrar a filha. Domingos Botelho

mandou recolher à loja a vitela e a vaca, dizendo que quem dava a filha

dava a mãe. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem um presente de

pastéis em rica salva de prata. O juiz de fora repartiu os pastéis pelos

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meninos, e mandou guardar a salva, dizendo que receberia como

escárnio um presente de doces, que valiam dez patacões, sendo que

naturalmente os pastéis tinham vindo como ornato da bandeja, E assim

é que, ainda hoje, em Vila-Real, quando se dá um caso análogo de ficar

alguém com o conteúdo e continente, diz a gente da terra: "Aquele é

como o doutor Brocas".

Não tenho assunto de tradição com que possa reter-me em miudezas da

vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a

comarca, e ameaçava o marido de ir com seus cinco filhos para Lisboa,

se ele não saísse daquela intratável terra, Parece que a fidalguia de

Lamego, em todo o tempo orgulhosa de uma antigüidade que principia

na aclamação de Almacave, desdenhou a filáucia da dama do paço, e

esmerilhou certas vergônteas podres do tronco dos Botelhos Correais de

Mesquita, desprimorando-lhe as cãs com o fato de ele ter vivido dois

anos em Coimbra tocando flauta.

Em 1801, achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita

corregedor em Viseu.

Manuel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois anos, e freqüenta

o segundo ano jurídico. Simão, que tem quinze, estuda humanidades

em Coimbra. As meninas são o prazer e a vida toda do coração de sua

mãe.

O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver

com seu irmão, temeroso do gênio sanguinário dele. Conta que a cada

passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o

dinheiro dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da

academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e

provocando-os à luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de

seu filho Simão, e diz à consternada mãe que o rapaz é a figura e o

gênio de seu bisavô Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que

dera Trás-os-Montes.

Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de

Coimbra antes de férias e vai a Viseu queixar-se e pedir que lhe dê seu

pai outro destino, D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavalaria. De

Viseu parte para Bragança Manuel Botelho, e justifica-se nobre dos

quatro costados para ser cadete.

No entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos e

aprovados. O pai maravilhava-se do talento do filho, e desculpa-o da

extravagância por amor do talento. Pede-lhe explicações do seu mau

viver com Manuel, e ele responde que seu irmão o quer forçar a viver

monásticamente.

Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de

compleição; belo homem com as feições de sua mãe, e a corpulência

dela; mas de todo avesso em gênio. Na plebe de Viseu é que ele escolhe

amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que

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faz, Simão zomba das genealogias, e mormente do general Caldeirão

que morreu frito. Isto bastou para ele granjear a malquerência de sua

mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou

parte no desgosto dela e na aversão ao filho. As irmãs temiam-no,

tirante Rita, a mais nova, com quem ele brincava puerilmente, e a quem

obedecia, se ela lhe pedia, com meiguices de criança, que não andasse

com pessoas mecânicas.

Finalizavam as férias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um

dos seus criados tinha ido levar a beber os machos, e, por descuido ou

propósito, deixou quebrar algumas vasilhas que estavam à vez no

parapeito do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o

criado; espancaram-no. Simão passava nesse ensejo; e, armado de um

fueiro que descravou de um carro, partiu muitas cabeças, e rematou o

trágico espetáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu

intacto fugira espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do

corregedor; os feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justiça à

porta do magistrado.

Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho geral

que o prendesse à sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas irritada

como mãe, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que,

sem detença, fugisse para Coimbra, e esperasse lá o perdão do pai.

O corregedor quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se

zangado, e prometeu fazê-lo capturar em Coimbra. Como, porém, D.

Rita lhe chamasse brutal nas suas vinganças e estúpido juiz de uma

rapaziada, o magistrado desenrugou a severidade postiça da testa, e

confessou tacitamente que era brutal e estúpido juiz.

II

Simão Botelho levou de Viseu para Coimbra arrogantes convicções da

sua valentia. Se recordava os chibantes pormenores da derrota em que

pusera trinta aguadeiros, o som cavo das pancadas, a queda atordoada

deste, o levantar-se daquele, ensangüentado, a bordoada que abrangia

três a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de todos, e o

estrépito dos cântaros afinal, Simão deliciava-se nestas lembranças,

como ainda não vi nalgum drama, em que o veterano de cem batalhas

relembra os louros de cada uma, e esmorece, afinal, estafado de

espantar, quando não é de estafar, os ouvintes.

O acadêmico, porém, com os seus entusiasmos, era incomparavelmente

muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragédia. As

recordações esporeavam-no a façanhas novas, e naquele tempo a

academia dava azo a elas. A mocidade estudiosa, em grande parte,

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simpatizava com as balbuciantes teorias da liberdade, mais por

pressentimento, que por estudo. Os apóstolos da revolução francesa não

tinham podido fazer revoar o trovão dos seus clamores neste canto do

mundo; mas os livros dos enciclopedistas, as fontes onde a geração

seguinte bebera a peçonha que saiu no sangue de noventa e três, não

eram de todo ignorados. As doutrinas da regeneração social pela

guilhotina tinham alguns tímidos sectários em Portugal, e esses de ver é

que deviam pertencer à geração nova. Além de que, o rancor à

Inglaterra lavrara nas entranhas das classes manufatureiras, e o

desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado, desde o

princípio do século anterior, com as sogas de ruinosos e pérfidos

tratados, estava no ânimo de muitos e bons portugueses que se

queriam antes aliançados com a França. Estes eram os pensadores

reflexivos; os sectários da academia, porém, exprimiam mais a paixão

da novidade que as doutrinas do raciocínio.

No ano anterior de 1800, saíra Antônio de Araújo de Azevedo, depois

conde da Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de

Portugal. Rejeitaram-lhe as potências aliadas as propostas, tendo-lhe

em conta de nada os dezesseis milhões que o diplomata oferecia ao

primeiro cônsul. Sem delongas, foi o território português infestado pelos

exércitos de Espanha e França. As nossas tropas, comandadas pelo

duque de Lafões, não chegaram a travar a luta desigual, porque a esse

tempo Luís Pinto de Sousa, mais tarde visconde de Balsemão, negociara

ignominosa paz em Badajoz, com cedência de Olivença à Espanha,

exclusão de ingleses de nossos portos, e indenização de alguns milhões

à França.

Estes sucessos tinham irritado contra Napoleão os ânimos daqueles que

odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a congratularem-se

do rompimento com Inglaterra. Entre os desta parcialidade, na

convulsiva e irrequieta academia, era voto de grande monta Simão

Botelho, apesar dos seus imberbes dezesseis anos. Mirabeau, Danton,

Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e mártires do grande

açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de Simão. Difamálos

na sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada certa, e pistolas

engatilhadas à cara do difamador. O filho do corregedor de Viseu

defendia que Portugal devia regenerar-se num batismo de sangue, para

que a hidra dos tiranos não erguesse mais uma das suas mil cabeças

sob a dava do Hércules popular.

Estes discursos, arremedo de alguma clandestina objurgatória de Saint-

Just, afugentavam da sua comunhão aqueles mesmos que o tinham

aplaudido em mais racionais princípios de liberdade. Simão Botelho

tornou-se odioso aos condiscípulos, que, para se salvarem pela infâmia,

o delataram ao bispo-conde e ao reitor da Universidade.

15

Um dia, proclamava o demagogo acadêmico na praça de Sansão aos

poucos ouvintes que lhe restaram fiéis, uns por medo, outros por

analogia de bossas. O discurso ia no mais acrisolado da idéia regicida,

quando uma escolta de verdeais lhe aguou a escandescência. Quis o

orador resistir, aperrando as pistolas, mas de sobra sabiam os braços

musculosos da corte do reitor com quem as haviam. O jacobino,

desarmado e cercado, entre a escolta dos arqueiros foi levado ao

cárcere acadêmico, donde saiu seis meses depois, a grandes instâncias

dos amigos de seu pai e dos parentes de D. Rita Preciosa.

Perdido o ano letivo, foi para Viseu Simão. O corregedor repeliu-o da

sua presença com ameaças de o expulsar de casa. A mãe, mais levada

do dever que do coração. intercedeu pelo filho e conseguiu sentá-lo à

mesa comum.

No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de

Simão. As companhias da relé desprezou-as. Saía de casa raras vezes,

ou só, ou com a irmã mais nova, sua predileta. O campo, as árvores e

os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de

estio demorava-se por fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim

o viam admiravam-lhe o ar cismador e o recolhimento que o

seqüestrava da vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía

quando o chamavam para a mesa.

D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido dela, ao

fim de cinco meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra.

Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que

parecia absurda reforma aos dezessete anos.

Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira,

regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a

vira pela primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da

ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais

seriedade que a usual nos seus anos.

Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos

quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores

de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor dos quinze

anos é uma brincadeira; é a última manifestação do amor às bonecas; é

a tentativa da avezinha que ensaia o vôo fora do ninho, sempre com os

olhos fitos na ave-mãe, que a está de fronte próxima chamando: tanto

sabe a primeira o que é amar muito, como a segunda o que é voar para

longe.

Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu

amor.

O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivo

de litígios, em que Domingos Botelho lhe deu sentenças contra. Afora

isso, ainda no ano anterior dois criados de Tadeu de Albuquerque

tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. E, pois, evidente

16

que o amor de Teresa, declinando de si o dever de obtemperar e

sacrificar-se ao justo azedume de seu pai, era verdadeiro e forte.

E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaramse

três meses, sem darem rebate à vizinhança e nem sequer suspeitas

às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais

honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem

outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora

sua, lhe dar, com o coração, o seu grande patrimônio.

Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível

ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um

patrimônio!

Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindose

da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da

janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento

antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue

na cabeça; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades

inflexíveis da jaula. Teve tentações de se matar, na impotência de

socorrê-la. As restantes horas daquela noite passou-as em raivas e

projetos de vingança. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e

renasceu a esperança com os cálculos.

Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito de tal

modo transfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado dele,

foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de ir enquanto assim

estivesse febril. Simão, porém, entre mil projetos, achara melhor o de ir

para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultar a Viseu falar

com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a

situação de Teresa.

Descera o acadêmico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs, e

beijar a mão do pai, que para esta hora reservara uma admoestração

severa, a ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria se ele

caísse em novas extravagâncias. Quando metia o pé no estribo, viu a

seu lado uma velha mendiga, estendeu-lhe a mão aberta como quem

pede esmola, e, na palma da mão, um pequeno papel. Sobressaltou-se

o moço; e, a poucos passos distante de sua casa, leu estas linhas:

"Meu pai diz que me vai encerrar num convento por tua causa. Sofrerei

tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e achar-me-ás no convento,

ou no céu, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para Coimbra.

Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome hás de

responder à tua pobre Teresa".

A mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam nas

aulas, em parte nenhuma o viam. Das antigas relações restavam-lhe

apenas as dos condiscípulos sensatos que o aconselhavam para bem, e

o visitaram no cárcere de seis meses, dando-lhe alentos e recursos, que

seu pai lhe não dava, e sua mãe escassamente supria. Estudava com

17

fervor, como quem já dali formava as bases do futuro renome e da

posição por ele merecida, bastante a sustentar dignamente a esposa. A

ninguém confiava o seu segredo, senão às cartas que enviava a Teresa,

longas cartas em que folgava o espírito da tarefa da ciência. A

apaixonada menina escrevia-lhe a miúdo, e já dizia que a ameaça do

convento fora mero terror de que já não tinha medo, porque seu pai não

podia viver sem ela.

Isto afervorou-lhe para mais o amor ao estudo. Simão, chamado em

pontos difíceis das matérias do primeiro ano, tal conta deu de si, que os

lentes e os condiscípulos o houveram como primeiro premiado.

A este tempo. Manuel Botelho, cadete em Bragança, destacado no

Porto, licenciou-se para estudar na Universidade as matemáticas.

Animou-o a notícia do reviramento que se dera em seu irmão. Foi viver

com ele; achou-o quieto. mas alheado numa idéia que o tornava

misantropo e intratável noutro gênero. Pouco tempo conviveram, sendo

a causa da separação um desgraçado amor de Manuel Botelho a uma

açoreana casada com um acadêmico. A esposa apaixonada perdeu-se

nas ilusões do cego amante. Deixou o marido e fugiu com ele para

Lisboa, e daí para Espanha. Em outro relanço desta narrativa darei

conta do remate deste episódio.

No mês de fevereiro de 1803 recebeu Simão Botelho uma carta de

Tereza. No seguinte capítulo se diz minuciosamente a peripécia que

forçara a filha de Tadeu de Albuquerque a escrever aquela carta de

pungentíssima surpresa para o acadêmico, convertido aos deveres, à

honra, à sociedade e a Deus pelo amor.

III

O pai de Teresa não embicaria na impureza do sangue do corregedor, se

o ajustarem-se os dois filhos em casamento se compadecesse com o

ódio de um e o desprezo do outro. O magistrado mofava do rancor do

seu vizinho, e o vizinho malsinava de venalidade a reputação do

magistrado. Este sabia da injuriosa vingança em que o outro se ia

despicando; fingia-se invulnerável à detração; mas de dia para dia se

lhe azedava a bílis; e é de crer que, se o não contivessem considerações

da família, sofreria menos, desabafando pela boca dum bacamarte,

arma da predileção dos Botelhos Correais de Mesquita. Seria impossível

o reconciliarem-se.

Rita, a filha mais nova, estava um dia na janela do quarto de Simão, e

viu a vizinha rente com os vidros e a testa apoiada nas mãos. Sabia

Teresa que era aquela menina a mais querida irmã de Simão, e a que

mais semelhança de parecer tinha com ele. Saiu da sua artificial

18

indiferença, e respondeu ao reparo de Rita, fazendo-lhe com a mão um

gesto e sorrindo. A filha do corregedor sorriu também, mas fugiu logo

da janela, porque sua mãe tinha proibido às filhas de trocarem vistas

com pessoa daquele casa.

No dia seguinte, à mesma hora, levada da simpatia que lhe causara

aquele gesto de amizade, tornou Rita à janela, e lá viu Teresa com os

olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando. Sorriram-se com

resguardo, afastando-se a um pouco do peitoril das janelas; e assim,

ambas de pé, no interior dos quartos, se estavam contemplando. Como

a rua era estreita, podiam ouvir-se, falando baixo. Tereza, mais pelo

movimento dos lábios que por palavras, perguntou a Rita se era sua

amiga. A menina respondeu com um gesto afirmativo, e fugiu,

acenando-lhe um adeus. Estes rápidos instantes de se verem repetiramse

sucessivos dias, até que, perdido o maior medo de ambas, ousaram

demorar-se em palestras a meia voz. Tereza falava de Simão, contava à

menina de onze anos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ela havia

de ser nada sua irmã, recomendando-lhe muito que não dissesse nada à

sua família.

Numa dessas conversações, Rita descuidara-se, e levantou de modo a

voz que foi ouvida de uma irmã, que a foi logo acusar ao pai. O

corregedor chamou Rita, e forçou-a pelo terror a contar tudo que ouvira

à vizinha. Tanta foi sua cólera, que, sem atender às razões da esposa,

que viera espavorida dos gritos, correu ao quarto de Simão, e viu ainda

Teresa à janela.

- Olé! - disse ele à pálida menina - Não tenha a confiança de pôr olhos

em pessoa de minha casa, Se quer casar, case com um sapateiro, que é

um digno genro de seu pai.

Tereza não ouviu o remate da brutal apóstrofe: tinha fugido aturdida e

envergonhada. Porém, como o desabrido ministro ficasse bramindo no

quarto, e Tadeu de Albuquerque saísse a uma janela, a cólera do doutor

redobrou, e a torrente das injúrias, longo tempo represada, bateu no

rosto do vizinho, que não ousou replicar-lhe.

Tadeu interrogou sua filha, e acreditou que foi causa à sanha de

Domingos Botelho estarem as duas meninas praticando inocentemente,

por trejeitos, em coisas de sua idade. Desculpou o velho a criancice de

Teresa, admoestando-a que não voltasse àquela janela.

Esta mansidão do fidalgo, cujo natural era bravio, tem a sua explicação

no projeto de casar em breve a filha com seu primo Baltasar Coutinho,

de Castro-d'Aire, senhor de casa, e igualmente nobre da mesma

prosápia. Cuidava o velho, presunçoso conhecedor do coração das

mulheres, que a brandura seria o mais seguro expediente para levar a

filha ao esquecimento daquele pueril amor a Simão. Era máxima sua

que o amor, aos quinze anos, carece de consistência para 50breviver a

uma ausência de seis meses. Não pensava errado o fidalgo, mas o erro

19

existia. As exceções têm sido o ludíbrio dos mais acerados pensadores,

tanto no especulativo como no experimental. Não era muito que Tadeu

de Albuquerque fosse enganado em coisas de amor e coração de

mulher, cujas variantes são tantas e tão caprichosas, que eu não sei se

alguma máxima pode ser-nos guia, a não ser esta: "Em cada mulher,

quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se

hão de desmentir umas às outras". Isto é o mais seguro; mas não é

infalível. Aí está Teresa que parece ser única em si. Dir-se-á que as três

da conta, que diz a sentença, não podem coexistir com a quarta aos

quinze anos? Também o penso assim, posto que a fixidez, a constância

daquele amor, funda em causa independente do coração: é porque

Teresa não vai à sociedade, não tem um altar em cada noite na sala,

não provou o incenso doutros galãs, nem teve ainda uma hora de

comparar a imagem amada, desluzida pela ausência, com a imagem

amante, amor nos olhos que a fitam, e amor nas palavras que a

convencem de que há um coração para cada homem, e uma só

mocidade para cada mulher. Quem me diz a mim que Teresa teria em si

as quatro mulheres da máxima, se o vapor de quatro incensórios lhe

estonteasse o espírito? Não é fácil, nem preciso decidir. E vamos ao

conto.

Acerca de Simão Botelho, nunca diante de sua filha Tadeu de

Albuquerque proferiu palavra, nem antes nem depois do disparate do

corregedor. O que ele fez logo foi chamar a Viseu o sobrinho de Castrod'Aire,

e preveni-lo do seu desígnio, para que ele, em face de Teresa,

procedesse como convinha a um enamorado de feição, e mutuamente

se apaixonassem e prometessem auspicioso futuro ao casamento.

Por parte de Baltasar Coutinho a paixão inflamou-se tão depressa,

quanto o coração de Teresa se congelou de terror e repugnância. O

morgado de Castro-d'Aire, atribuindo a frieza de sua prima a modéstia,

inocência e acanhamento, lisonjeou-se do virginal melindre daquela

alma, e saboreou de antemão o prazer de uma lenta, mas segura

conquista. Verdade é que Baltazar nunca se explicara de modo que

Teresa lhe desse resposta decisiva. Um dia, porém, instigado por seu

tio, afoitou-se o ditoso noivo a falar assim à melancólica menina:

- É tempo de lhe abrir o meu coração, prima. Está bem disposta a ouvirme?

- Eu estou sempre bem disposta a ouvi-lo, primo Baltasar.

O desdém aborrecido desta resposta abalou algum tanto as convicções

do fidalgo, respeito à inocência, modéstia e acanhamento de sua prima.

Ainda assim, quis ele no momento persuadir-se que a boa vontade não

poderia exprimir-se doutro modo, e continuou:

- Os nossos corações penso eu que estão unidos; agora é preciso que as

nossas casas se unam.

Teresa empalideceu, e baixou os olhos.

20

- Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradável?! - prosseguiu Baltasar,

rebatido pela desfiguração de Teresa.

- Disse-me o que é impossível fazer-se - respondeu ela sem turvação -

O primo engana-se: os nossos corações não estão unidos. Sou muito

sua amiga, mas nunca pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que

o primo pensasse em tal.

- Quer dizer que me aborrece, prima Teresa? - atalhou, corrido, o

morgado.

- Não, senhor: já lhe disse que o estimava muito, e por isso mesmo não

devo ser esposa dum amigo a quem não posso amar. A infelicidade não

seria só minha...

- Muito bem... Posso eu saber - tornou com refalsado sorriso o primo -

quem é que me disputa o coração de minha prima?

- Que lucra em o saber?

- Lucro saber, pelo menos, que a minha prima ama outro homem... E

exato?

- É.

- E com tamanha paixão que desobedece a seu pai?

- Não desobedeço: o coração é mais forte que a submissa vontade duma

filha. Desobedeceria, se casasse contra a vontade de meu pai; mas eu

não disse ao primo Baltasar que casava; disse-lhe unicamente que

amava.

- Sabe a prima que eu estou espantado do seu modo de falar!... Quem

pensaria que os seus dezesseis anos estavam tão abundantes de

palavras!...

- Não são só palavras, primo - retorquiu Teresa com gravidade - são

sentimentos que merecem a sua estima, por serem verdadeiros. Se eu

lhe mentisse, ficaria mais bem vista de meu primo?

- Não, prima Teresa; fez bem em dizer a verdade, e de a dizer em tudo.

Ora olhe: não duvida declarar quem é o ditoso mortal da sua

preferência?

- Que lhe faz saber isso?

- Muito, prima: todos temos a nossa vaidade, e eu folgaria muito de me

ver vencido por quem tivesse merecimentos que eu não tenho aos seus

olhos. Tem a bondade de me dizer o seu segredo, como o diria a seu

primo Baltasar, se o tivesse em conta de seu amigo intimo?

- Nessa conta é que eu o não posso já ter... - respondeu Teresa,

sorrindo, e pausando, como ele, as sílabas das palavras.

- Pois nem para amigo me quer?!

- O primo não me perdoa a sinceridade que eu tive, e será de hoje em

diante meu inimigo.

- Pelo contrário... - tornou ele com mal rebuçada ironia - muito pelo

contrário... Eu lhe provarei que sou seu amigo, se alguma vez a vir

casada com algum miserável indigno de si.

21

- Casada!... - interrompeu ela. Mas Baltasar cortou-lhe logo a réplica

deste modo:

- Casada com algum famoso ébrio ou jogador de pau, valentão de

aguadeiros, distinto cavalheiro, que passa os anos letivos encarcerados

nas cadeias de Coimbra...

Claro está que Baltasar Coutinho conhecia o segredo de Teresa. Seu tio,

naturalmente, lhe comunicara a criancice da prima, talvez antes de

destinar-lhe a esposa.

Ouvira Teresa o tom sarcástico daquelas palavras, e erguera-se

respondendo com altivez:

- Não tem mais que me diga, primo Baltasar?

- Tenho, prima; queira sentar-se algum tempo mais. Não cuide agora

que está falando com o namorado infeliz: convença-se de que fala com

o seu mais próximo parente, mais sincero amigo, e mais decidido

guarda da sua dignidade e fortuna. Eu sabia que minha prima, contra a

expressa vontade de seu pai, uma ou outra vez conversava da janela

com o filho do corregedor. Não dei valor ao sucesso, e tomei-o como

brincadeira própria da sua idade. Como eu freqüentasse o meu último

ano em Coimbra, há dois anos, conheci de sobra Simão Botelho. Quando

voltei, e me contaram a sua afeição ao acadêmico, pasmei da boa fé da

priminha; depois entendi que a sua mesma inocência devia ser o seu

anjo da guarda. Agora, como seu amigo, compunjo-me de a ver ainda

fascinada pela perversidade do seu vizinho Não se recorda de ter visto

Simão Botelho suciando com a ínfima vilanagem desta terra?! Não viu

os seus criados com as cabeças quebradas pelo tal varredor de feiras?

Não lhe constou que ele, em Coimbra, abarrotado de vinho, andava

pelas ruas armado como um salteador de estradas, proclamando à

canalha a guerra aos nobres e aos reis, e à religião de nossos país? A

prima ignoraria isto porventura?

- Ignorava parte disso e não me aflige a sabê-lo. Desde que conheci

Simão, não me consta que ele tenha dado o menor desgosto à sua

família, nem ouço falar mal dele.

- E está por isso persuadida de que Simão deve ao seu amor a reforma

de costume?

- Não sei, nem penso nisso - replicou com enfado Tereza.

- Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas últimas palavras: eu

hei de, enquanto viver, trabalhar por salvá-la das garras de Simão

Botelho. Se seu pai lhe faltar, fico eu. Se as leis a não defenderem dos

ataques do seu demônio, eu farei ver ao valentão que a vitória sobre os

aguadeiros não o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora

da casa de meu tio Tadeu de Albuquerque.

- Então o primo quer me governar!? - atalhou ela com desabrida

irritação.

22

- Quero-a dirigir enquanto a sua razão precisar de auxílio. Tenha juízo e

eu serei indiferente ao seu destino. Não a enfado mais, prima Teresa.

Baltasar Coutinho foi dali procurar seu tio, e contou-lhe o essencial do

diálogo. Tadeu, atônito da coragem da filha e ferido no coração e

direitos paternais, correu ao quarto dela, disposto a espancá-la. Reteveo

Baltasar, reflexionando-lhe que a violência prejudicaria muito a crise,

sendo coisa de esperar que Teresa fugisse de casa. Refreou o pai a sua

ira, e meditou. Horas depois, chamou sua filha, mandou-a sentar ao pé

de si, em termos serenos e gesto bem composto, lhe disse que era sua

vontade casá-la com o primo; porém, que ele já sabia que a vontade de

sua filha não era essa. Ajuntou que a não violentaria; mas também não

consentiria que ela, sovando aos pés o pundonor de seu pai, se desse de

coração ao filho do seu maior inimigo. Disse mais que estava a resvalar

na sepultura, e mais depressa desceria a ela, perdendo o amor da filha,

que ele já considerava morta. Terminou perguntando a Teresa se ela

duvidava entrar num convento, e a esperar que seu pai morresse, para

depois ser desgraçada à sua vontade.

Teresa respondeu, chorando, que entraria num convento, se essa era a

vontade de seu pai; porém, que se não privasse ele de a ter em sua

companhia nem a privasse a ela dos seus afetos, por medo de que sua

filha praticasse alguma ação indigna, ou lhe desobedecesse no que era

virtude obedecer.

Prometeu-lhe julgar-se morta para todos os homens, menos para seu

pai.

Tadeu ouviu-a, e não lhe replicou.

IV

O coração de Teresa estava mentindo. Vão pedir sinceridade ao coração!

Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de

Tadeu de Albuquerque. E mulher varonil, tem força de caráter, orgulho

fortalecido pelo amor, desapego das vulgares apreensões, se são

apreensões a renúncia que uma filha fez do seu alvedrio às

imprevidentes e caprichosas vontades de seu pai. Diz boa gente que

não, e eu abundo sempre no voto da gente boa. Não será aleive

atribuir-lhe uma pouca de astúcia ou hipocrisia, se quiserem;

perspicácia seria mais correto dizer. Teresa adivinha que a lealdade

tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os melhores fins se

atingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes

ardis são raros na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance

quase nunca é trivial, e esta de que rezam os meus apontamentos era

23

distintíssima. A mim me basta crer em sua distinção, a celebridade que

ela veio a ganhar à conta da desgraça.

Da carta que ela escreveu a Simão Botelho, contando as cenas

descritas, a crítica deduz que a menina de Viseu contemporizava com o

pai, pondo a mira no futuro, sem passar pelo dissabor do convento, nem

romper com o velho em manifesta desobediência. Na narrativa que fez

ao acadêmico omitiu ela as ameaças do primo Baltasar, cláusula que. a

ser transmitida, arrebataria de Coimbra o moço, em quem sobejavam

brios e bravura para mantê-los.

Mas não é esta ainda a carta que surpreendeu Simão Botelho.

Parecia bonançoso o céu de Teresa. Seu pai não falava em claustro nem

em casamento. Baltasar Coutinho voltara ao seu solar de Castro-d'Aire.

A tranqüila menina dava semanalmente estas boas novas a Simão, que,

aliando às venturas do coração as riquezas do espírito, estudava

incessantemente, e desvelava as noites arquitetando o seu edifício de

futura glória.

Ao romper d'alva dum domingo de junho de 1803, foi Teresa chamada

para ir com seu pai à primeira missa da igreja paroquial. Vestiu-se a

menina, assustada, e encontrou o velho na antecâmara a recebê-la com

muito agrado, perguntando-lhe se ela se erguia de bons humores para

dar ao autor de seus dias um resto de velhice feliz. O silêncio de Teresa

era interrogador.

- Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É

preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que

deres este passo difícil, conhecerás que a tua felicidade é daquelas que

precisam ser impostas pela violência. Mas repara, minha querida filha,

que a violência dum pai é sempre amor. Amor tem sido a minha

condescendência e brandura para contigo. Outro teria subjugado a tua

desobediência com maus tratos, com os rigores do convento, e talvez

com o desfalque do teu grande patrimônio. Eu, não. Esperei que o

tempo te aclarasse o juízo, e felicito-me de te julgar desassombrada do

diabólico prestígio do maldito que acordou o teu inocente coração. Não

te consultei outra vez sobre este casamento, por temer que a reflexão

fizesse mal ao zelo de boa filha com que tu vais abraçar teu pai, e

agradecer-lhe a prudência com que ele respeitou o teu gênio, velando

sempre a honra de te encontrar digna do seu amor.

Teresa não desfitou os olhos do pai; mas tão abstraída estava, que

escassamente lhe ouviu as primeiras palavras, e nada das últimas.

- Não me respondes, Teresa?! - tornou Tadeu, tomando-lhe

cariciosamente as mãos.

- Que hei de eu responder-lhe, meu pai? - balbuciou ela.

- Dá-me o que te peço? Enches de contentamento os poucos dias que

me restam?

- E será o pai feliz com o meu sacrifício?

24

- Não digas sacrifício, Teresa... Amanhã a estas horas verás que

transfiguração se fez na tua alma. Teu primo é um composto de todas

as virtudes; nem a qualidade de ser um gentil moço lhe falta, como se a

riqueza, a ciência e as virtudes não bastassem a formar um marido

excelente.

- E ele quer-me. depois de eu me ter negado? - disse ela com amargura

irônica.

- Se ele está apaixonado, filha!... e tem bastante confiança em si para

crer que tu hás de amá-lo muito!...

- E não será mais certo odiá-lo eu sempre?! Eu agora mesmo o abomino

como nunca pensei que se pudesse abominar! Meu pai... - continuou

ela, chorando, com as mãos erguidas - mate-me; mas não me force a

casar com meu primo! É escusada a violência, porque eu não caso!

Tadeu mudou de aspecto, e disse irado:

- Hás de casar! - Quero que cases! Quero!... Quando não, amaldiçoada

serás para sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para

teu primo! Nenhum infame há de aqui pôr pé nas alcatifas de meus

avós. Se és uma alma vil, não me pertences, não és minha filha, não

podes herdar apelidos honrosos, que foram pela primeira vez insultados

pelo pai desse miserável que tu amas! Maldita sejas! Entra nesse

quarto, e espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um

raio de Sol.

Teresa ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu quarto.

Tadeu de Albuquerque foi encontrar seu sobrinho, e disse-lhe:

- Não te posso dar minha filha, porque já não tenho filha. A miserável, a

quem dei este nome, perdeu-se para nós e para ela.

Baltasar, que, a juízo de seu tio, era um composto de excelência, tinha

apenas um quebra; a absoluta carência de brios. Malograda a tentativa

do seu amor de emboscada, tornou para a terra o primo de Teresa,

dizendo ao velho que ele o livraria do assédio em que Simão Botelho lhe

tinha o coração da filha. Não aprovou a reclusão no convento,

discorrendo sobre as hipóteses infamantes que a opinião pública

inventaria. Aconselhou que a deixasse estar em casa, e esperasse que o

filho do corregedor viesse de Coimbra.

Ponderaram no ânimo do velho as razões de Baltasar. Teresa

maravilhou-se da quietação inesperada de seu pai e desconfiou da

incoerência. Escreveu a Simão. Nada lhe escondeu do sucedido; nem as

ameças de Baltasar por delicadeza suprimiu. Rematava comunicandolhe

as suas suspeitas de algum plano de violência.

O acadêmico, chegando ao período das ameças. já não tinha clara luz

nos olhos para decifrar o restante da carta. Tremia sezões, e as artérias

frontais arfavam-lhe intumescidas. Não era sobressalto do coração

apaixonado: era a índole arrogante que lhe escaldava o sangue. Ir dali a

Castro-d'Aire e apunhalar o primo de Teresa na sua própria casa, foi o

25

primeiro conselho que lhe segredou a fúria do ódio. Neste propósito

saiu, alugou cavalo, e recolheu a vestir-se de jornada. Já preparado, a

cada minuto de espera assomava-se em frenesis. O cavalo demorou-se

meia hora, e o seu bom anjo, neste espaço, vestido com as galas com

que ele vestia na imaginação Teresa, deu-lhe rebates de saudade

daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia em que cismava

na felicidade que o amor lhe prometia, se ele a procurasse no caminho

do trabalho, e da honra. Contemplou os seus livros com tanto afeto,

como se em cada um estivesse uma página da história do seu coração.

Nenhuma daquelas páginas tinha ele lido, sem que a imagem de Teresa

lhe aparecesse a fortalecê-lo para vencer os tédios da continuada

aplicação, e os ímpetos dum natural inquieto e ansioso de comoções

desusadas. "E há de tudo acabar assim? - pensava ele, com a face entre

as mãos, encostado à sua banca de estudo. - Ainda há pouco eu era tão

feliz!... - Feliz! - repetiu ele, erguendo-se de golpe. - Quem pode ser

feliz com a desonra duma ameaça impune Mas eu perco-a! Nunca mais

hei de vê-la!. . . Fugirei como um assassino, e meu pai será o meu

primeiro inimigo, e ela mesmo há de horrorizar-se da minha vingança...

A ameaça só ela a ouviu; e, se eu tivesse sido aviltado no conceito de

Teresa pelos insultos do miserável, talvez que ela os não repetisse.

Simão Botelho releu a carta duas vezes, e à terceira leitura achou

menos afrontosas as bravatas do fidalgo cioso. As linhas finais

desmentiam formalmente a suspeita do aviltamento, com que o seu

orgulho o atormentava: eram expressões ternas, súplicas ao seu amor

como recompensa dos passados e futuros desgostos, visões

encantadoras do futuro, novos juramentos de constância, e sentidas

frases de saudade.

Quando o arreeiro bateu à porta, Simão Botelho já não pensava em

matar o homem de Castro-d'Aire; mas resolvera ir a Viseu, entrar de

noite, esconder-se e ver Teresa. Faltava-lhe, porém, casa de confiança

onde se ocultasse. Nas estalagens, seria logo descoberto. Perguntou ao

arreeiro se conhecia alguma casa em Viseu onde ele pudesse estar

escondido uma noite ou duas, sem receio de ser denunciado. O arreeiro

respondeu que tinha, a um quarto de légua de Viseu, um primo

ferrador; e não conhecia em Viseu senão os estalajadeiros. Simão achou

aproveitável o parentesco do homem, e logo daí o presenteou com uma

jaqueta de peles e uma faixa de seda escarlate, à conta de maiores

valores prometidos, se ele o bem servisse numa empresa, amorosa.

No dia seguinte, chegou o acadêmico a casa do ferrador. O arreeiro deu

conta ao seu parente do que vinha tratado com o estudante.

Foi Simão Botelho cautelosamente hospedado, e o arreeiro abalou no

mesmo ponto para Viseu, com uma carta destinada a uma mendiga, que

morava no mais impraticável beco da terra. A mendiga informou-se

miudamente da pessoa que enviava a carta, e saiu, mandando esperar o

26

caminheiro. Pouco depois. voltou ela com a resposta, e o arreeiro partiu

a galope.

Era a resposta um grito de alegria. Teresa não refletiu, respondendo a

Simão que naquela noite se festejavam os seus anos, e se reuniam em

casa os parentes. Disse-lhe que às onze horas em ponto ela iria ao

quintal e lhe abriria a porta.

Não esperava tanto o acadêmico. O que ele pedia era falar-lhe da rua

para a janela do seu quarto, e receava impossível este prazer, que ele

avaliava o máximo. Apertar-lhe a mão, sentir-lhe o hálito, abraçá-la

talvez, cometer a ousadia de um beijo, estas esperanças, tão além de

suas modestas e honestas ambições, igualmente o enlevavam e

assustavam. Enlevo e susto em corações que se estreiam na comédia

humana são sentimentos congeniais.

A hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez,

sem saber que os encantos da vida, os mais angélicos momentos da

alma, são esses lances de misterioso alvoroço que aos mais seródios de

coração sucedem em todas as razões da vida, e a todos os homens,

uma vez ao menos.

As onze horas em ponto estava Simão encostado á porta do quintal, e a

distância convencionada o arreeiro com o cavalo à rédea. A toada da

música, que vinha das salas remotas, alvoroçava-o, porque a festa em

casa de Tadeu de Albuquerque o surpreendera. No longo termo de três

anos nunca ele ouvira música naquela casa. Se ele soubesse o dia

natalício de Teresa, espantara-se menos da estranha alegria daquelas

salas, sempre fechadas como em dias de mortório. Simão imaginou

desvairadamente as quimeras que voejam, ora negras, ora translúcidas,

em redor da fantasia apaixonada. Não há baliza racional para as belas,

nem para as horrorosas ilusões, quando o amor as inventa. Simão

Botelho, com o ouvido colado à fechadura, ouvia apenas o som das

flautas, e as pancadas do coração sobressaltado.

V

Baltasar Coutinho estava na sala, simulando vingativa indiferença por

sua prima. As irmãs do fidalgo e a demais parentela da casa não

deixavam respirar Teresa. Moças e velhas, todas, uma, se repetiam,

aconselhando-a a reconciliar-se com seu primo, e dar a seu pai a alegria

que o pobre velho tanto rogava Deus, antes de fechar os olhos.

Replicava Teresa que não queria mal a seu primo, nem sequer estava

sentida dele; que era sua amiga, e sê-lo-ia sempre enquanto ele lhe

deixasse livre o coração.

O velho esperava muito daquela noitada de festa. Alguns parentes

presumidos de circunspetos, lhe tinham dito que seria proveitoso regalar

a filha com os prazeres congruentes à sua idade, dando-lhe ensejo a

27

que ela repartisse o espírito, concentrado num só ponto, por diversões

em que a natural vaidade se preocupa, e a força do amor contrariado se

vai a pouco e pouco quebrantando. Aconselharam-lhe as reuniões

amiúdas, já em sua casa, já na dos seus parentes, para deste modo

Teresa se mostrar a muitos, ser cortejada de todos, e ter em opinião de

menos valia o único homem com quem falava, e a quem julgava

superior a todos. O fidalgo acedeu, mas com dificuldade: é que tinha lá

um sistema seu de ajuizar das mulheres, vivera trinta anos de vida

libertina e dispendiosa, e se estava agora saboreando na economia e na

quietação. Os anos de Teresa eram pela primeira vez festejados com

estrondo. A morgada viu então o que era o minueto da corte e certos

jogos de prendas com que os intervalos naqueles tempos se aligeiravam

em delícias, sem fadiga do corpo, nem desagrado da moral.

Mas, de agitada que estava, Teresa não compartia do gozo dos seus

hóspedes. Desde que soaram as dez horas daquela noite, a rainha da

festa parecia tão alienada das finezas com que as senhoras e homens à

competência a lisonjeavam, que Baltasar Coutinho deu tento do

desassossego de sua prima, e teve a modéstia de imaginar que ela se

ofendera da indiferença dele, Generoso até ao perdão, o morgado de

Castro-d'Aire, compondo o rosto com gesto grave e melanc6lico, dirigiuse

a Teresa, e pediu-lhe desculpa da frieza que ele disse ser como a das

montanhas, que têm vulcões por dentro e neve por fora. Teresa teve a

sinceridade de responder que não tinha reparado na frieza de seu primo,

e chamou para junto dela uma menina, para evitar que a montanha se

fendesse em vulcões. Pouco depois ergueu-se e saiu da sala.

Eram dez horas e três quartos. Teresa correra ao fundo do quintal,

abrira a porta, e, como não visse alguém, tornou de corrida para a sala.

No momento, porém, de subir a escada que ligava o jardim à casa,

Baltasar Coutinho, que a espiava desde que ela saiu da sala, chegou a

uma das janelas sobre o jardim, bem longe de imaginar que a via.

Retirou-se, e entrou com Teresa na sala, ao mesmo tempo, por diversa

porta. Decorridos alguns minutos, a menina saiu outra vez e o primo

também. Teresa ouviu, a distância, o estrépito dum cavalo, quando

passou ao patamar da escada. Baltasar também o ouviu, e notou que

sua prima, receosa de ser vista e conhecida pela alvura do vestido,

levava uma capa ou chale que a envolvia toda. O de Castro-d'Aire fez pé

atrás para não ser visto. Teresa, porém, num relance de olhar

temeroso, ainda vira um vulto retirar-se. Teve medo, e retrocedeu a

largar a capa, e entrou na sala, ofegante de cansaço e pálida de medo.

- Que tens, minha filha? - disse-lhe o pai - Já duas vezes saíste da sala,

e vens tão alvoraçada! Tens algum incômodo, Teresa?

- Tenho uma dor: preciso de ir respirar de vez em quando... Nada é,

meu pai.

28

Tadeu acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dor;

só o não disse a seu sobrinho, porque o não encontrou, e soube que ele

tinha saído.

Também Teresa dera pela ausência do primo, e fingiu que o ia procurar,

resolução de que o velho gostou muito. Desceu ela ao jardim, correu à

porta onde a esperava Simão, abriu-a, e, com a voz cortada pela

ansiedade, apenas disse:

- Vai-te embora; vem amanhã às mesmas horas... Vai, vai!

Simão, quando isto ouvia, os olhos fitos num vulto que se aproximava

dele, rente com o muro do quintal. O arreeiro, que primeiro o vira, dera

um sinal, e entalara as rédeas do cavalo entre umas pedras, para ficar

desembaraçado, se o estudante se não pudesse haver com o inimigo.

Simão Botelho não se moveu do local, e Baltasar Coutinho parou na

distância de seis passos. O arreeiro tinha lentamente avançado a meio

caminho do patrão, quando este lhe disse que não se aproximasse. E,

caminhando para o vulto, aperrou duas pistolas, e disse-lhe:

- Isto aqui não é caminho. Que quer?

O fidalgo não respondeu.

- Parece-me que lhe abro a boca com uma bala - tornou Simão.

- Que lhe importa o senhor quem está?! - disse Baltasar - Se eu tiver

um segredo, como o senhor parece que tem o seu nestes sítios, sou

obrigado a confessar-lhe?

Simão refletiu, e replicou.

- Este muro pertence a uma casa onde mora uma só família, e uma só

mulher.

- Estão nessa casa mais de quarenta mulheres esta noite - redargüiu o

primo de Teresa. - Se o cavalheiro espera uma, eu posso esperar outra.

- Quem é o senhor? - tornou com arrogância o filho do corregedor.

- Não conheço a pessoa que me interroga, nem quero conhecer.

Fiquemos cada um com o nosso incógnito. Boas noites.

Baltasar Coutinho retrocedeu, dizendo entre si:

- "Que partido tem uma espada contra dois homens e duas pistolas?"

Simão Botelho cavalgou, e partiu para casa do hospitaleiro ferrador.

O sobrinho de Tadeu de Albuquerque entrou na sala sem denunciar

levemente alteração de ânimo. Viu que Teresa o observava de revés, e

soube dissimular-se de modo que a sossegou. A pobre menina, ansiosa

por se ver sozinha, viu com prazer erguer-se para sair a primeira

família, que deu rebate às outras, menos ao de Castro-d'Aire e suas

irmãs, que ficaram hospedados em casa de seu tio, com tenção de se

demorarem oito dias em Viseu.

Velou Teresa o restante da noite, escrevendo a Simão a longa história

dos seus terrores, e pedindo-lhe perdão de o ela não ter advertido do

baile, por ficar doida de alegria com a sua vinda. No tocante ao plano de

se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta. Isto

29

espantou o acadêmico. A seu ver, o vulto era Baltasar Coutinho, e o pai

de Teresa devia ser avisado naquela mesma noite.

Respondeu ele contando a história do incidente com o encapotado;

receando, porém, assustar Teresa e privar-se da entrevista, escreveu

nova carta em que não transluzia medo de ser atacado, nem sequer

receio de marear-lhe a fama. Quis parecer a Simão Botelho que este era

o digno porte de um amante corajoso.

Passou o estudante aquele dia contando as longas horas, e meditando

instantes nos funestos resultados que podia ter a sua temerária ida, se

Baltasar Coutinho era aquele homem que reservara para melhor relance

a vingança da provocação insolente. Mas de si para si tinha ele que

pensar em que tal era mais cobardia que prudência.

O ferrador tinha uma filha, moça de vinte e quatro anos, formas bonitas,

um rosto belo e triste. Notou Simão os reparos em que ela se demorava

a contemplá-lo, e perguntou-lhe a causa daquele olhar melancólico com

que ela o fitava. Mariana corou, abriu um sorriso triste, e respondeu:

- Não sei o que me adivinha o coração a respeito de vossa senhoria.

Alguma desgraça está para lhe suceder...

- A menina não dizia isso - replicou Simão - sem saber alguma coisa da

minha vida.

- Alguma coisa sei... - tornou ela.

- Ouviu contar ao arreeiro?

- Não, senhor. E que meu pai conhece o paizinho de vossa senhoria, e

também conhece o senhor. E há bocadinho que eu ouvi estar meu pai a

dizer a meu tio, que é o arreeiro que veio com vossa senhoria, que tinha

suas razões para saber que alguma desgraça lhe estava para

acontecer...

- Por quê?

- Por amor duma fidalga de Viseu, que tem um primo em Castro-d'Aire.

Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher

pormenores do que ele julgava mistério entre duas famílias, quando o

mestre ferrador João da Cruz entrou no sobrado, onde o precedente

diálogo se passara. A moça, como ouvisse os passos do pai, saíra

lentamente por outra porta.

- Com sua licença - disse mestre João.

Dizendo, fechou por dentro ambas as portas, e sentou-se sobre uma

arca.

- Ora, meu fidalgo - continuou ele, descendo as mangas arregaçadas da

camisa, e apertando-as com dificuldade nos grossos pulsos, como quem

sabe as etiquetas das mangas - há de desculpar que eu viesse assim em

mangas de camisa; mas não dei com a jaqueta...

- Está muito bem, senhor João - atalhou o acadêmico.

- Pois, senhor, eu devo um favor a seu pai, e um favor daquela casta.

Uma vez armou-se aqui à minha porta uma desordem, a troco de um

30

couce que um macho dum almocreve deu numa égua, que estava

ferrando, e, em tão boa hora foi, que lhe partiu rente o jarrete por aqui,

salvo tal lugar.

João da Cruz mostrou na sua perna o ponto por onde fora fraturada a da

égua, e continuou:

- Eu tinha ali à mão o martelo, e não me tive que não pregasse com ele

na cabeça do macho, que foi logo pra terra. O recoveiro de Carção, que

era chibante, deitou as unhas a um bacamarte, que trazia entre uma

carga, e desfechou comigo, sem mais tirte nem garte. "Ó alma danada!

- disse-lhe eu - pois tu vês que o teu macho me aleijou esta égua, que

custou vinte peças a seu dono, e que eu tenho de pagar, e dás-me um

tiro por eu te atordoar o macho!?"

- E o tiro acertou-lhe? - atalhou Simão.

- Acertou; mas saberá vossa senhoria que me não matou; deu-me aqui

por este braço esquerdo com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou

à cabeceira da cama, e trago uma clavina, e desfecho-lha na tábua do

peito. O almocreve caiu como um tordo, e não tugiu nem mugiu.

Prenderam-me, e fui para Viseu e já lá estava há três anos, no ano que

o paízinho de vossa senhoria veio corregedor. Andava muita gente a

trabalhar contra mim, e todos me diziam que eu ia pernear na forca.

Estava lá na enxovia comigo um preso a cumprir sentença, e disse-me

ele que o senhor corregedor tinha muita devoção com as sete dores de

Nossa Senhora. Uma vez que ele ia passando com a família para a

missa, disse-lhe eu: - "Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas

sete dores de Maria Santíssima, que me mande ir à sua presença para

eu explicar a minha culpa a vossa senhoria". O paizinho de vossa

senhoria chamou o meirinho-geral, e mandou tomar o meu nome. Ao

outro dia fui chamado ao senhor corregedor, e contei-lhe tudo,

mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. Seu pai ouviu-me, e disseme:

- "Vai-te embora, que eu farei o que puder". O caso é, meu fidalgo,

que eu saí absolvido, quando muita gente dizia que eu havia de ser

enforcado à minha porta. Faz favor de me dizer se eu não devo andar

com a cara onde o seu paizinho põe os pés?!

- Tem o senhor João motivo para lhe ser grato, não há dúvida nenhuma.

- Agora faz favor de ouvir o mais. Eu, antes de ser ferrador, fui criado

de farda em casa do fidalgo de Castrod'Aire, que é o senhor Baltasar.

Conhece-o vossa senhoria? Ora, se conhece...

- Conheço de nome.

- Foi ele que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas

paguei-lhes, Deus louvado. Há de haver seis meses que ele me mandou

chamar a Viseu, e me disse que tinha trinta peças para me dar, se eu

lhe fizesse um serviço. - "O que vossa senhoria quiser, fidalgo". E vai

ele disse-me que queria que eu tirasse a vida a um homem. Isto buliu

31

cá por dentro comigo, porque. a falar a verdade, um homem que mata

outro num aperto não é matador de oficio, acho eu, não é assim?

- De certo... - respondeu Simão, adivinhando o remate da história. -

Quem era o homem que ele queria morto?

- Era vossa senhoria... O homem! - disse o ferrador com espanto - O

senhor nem sequer mudou de cor!

- Eu não mudo nunca de cor, senhor João - disse o acadêmico.

- Estou pasmado!

- E vossemecê não aceitou a incumbência, pelo que vejo - tornou

Simão.

- Não, senhor; e, então, logo que ele me disse quem era, a minha

vontade era pregar-lhe com a cabeça numa esquina.

- E ele disse-lhe a razão por que me mandava matar?

- Não, meu fidalgo; eu lhe conto: Na semana adiante, quando soube

que o senhor Baltasar (raios o partam!> tinha saído de Viseu, fui falar

com o senhor corregedor, e contei-lhe tudo como se passara. O senhor

corregedor esteve a cismar um pouquinho, e disse-me, e vossa senhoria

há de perdoar por eu lhe dizer o que seu pai me disse, tal e qual.

- Diga.

- Seu pai começou a esfregar o nariz, e disse-me: -"Eu sei o que é isso.

Se aquele brejeiro de meu filho Simão tivesse honra, não olharia para a

prima desse assassino. Cuida o patife que eu consentia que meu filho se

ligasse a uma filha de Tadeu de Albuquerque Ainda disse mais coisas

que me não lembram; mas eu fiquei sabendo tudo. Ora aqui tem o que

houve. Agora apareceu-me aqui vossa senhoria, e a noite passada foi a

Viseu. Perdoará a minha confiança: mas vossa senhoria foi falar com a

tal menina; e eu estive vai não vai a segui-lo; mas, como ia meu

cunhado, que é homem para três, fiquei descansado. Ele contou-me um

encontro que vossa senhoria teve à porta do quintal da menina. Se lá

torna, senhor Simão, vá preparado para alguma coisa de maior. Eu bem

sei que vossa senhoria não é medroso; mas duma traição ninguém se

livra. Se quer que eu vá também, estou às suas ordens; e a clavina que

deu polícia ao almocreve ainda ali está, e dá fogo debaixo de água,

como diz o outro. Mas, se vossa senhoria dá licença que eu lhe diga a

minha opinião, o melhor é não andar nessas encamisadas. Se quer

casar com ela, vá pedir a seu pai licença, e deixe o resto cá por minha

conta; ponto é que ela queria. que eu, num abrir e fechar de olhos, atiro

com ela para cima duma égua de chupeta. que ali tenho, e o pai e mais

o primo ficam a ver navios.

- Obrigado, meu amigo - disse Simão - aproveitarei os seus bons

serviços quando me forem necessários. Esta noite hei de ir, como fui a

noite passada, a Viseu. Se houver novidade, então veremos o que se há

de fazer. Conto com vossemecê, e creia que tem em mim um amigo.

32

Mestre João da Cruz não replicou. Dali foi examinar mudamente a

fecharia da clavina, e entender-se com o cunhado sobre cautelas

necessárias, enquanto descarregava a arma, e a carregava de novo com

uns zagalotes especiais, que ele denominava "amêndoas de pimpões".

Neste intervalo, Mariana, a filha do ferrador, entrou no sobrado, e disse

com meiguice a Simão Botelho:

- Então sempre é certo ir?

- Vou; para que não hei de ir?!

- Pois Nossa Senhora vá na sua companhia - tornou ela, saindo logo

para esconder as lágrimas.

VI

As dez horas e meia da noite daquele dia, três vultos convergiram para

o local, raro freqüentado, em que se abria a porta do quintal de Tadeu

de Albuquerque. Ali se detiveram alguns minutos discutindo e

gesticulando. Dos três vultos havia um, cujas palavras eram ouvidas em

silêncio e sem réplica pelos outros. Dizia ele a um dos dois:

- Não convém que estejas perto desta porta. Se o homem aparecesse

aqui morto, as suspeitas caiam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se

vocês um do outro, tenham o ouvido aplicado ao tropel do cavalo.

Depois apressem o passo até o encontrarem, de modo que os tiros

sejam dados longe daqui.

- Mas... - atalhou um - quem nos diz que ele veio ontem a cavalo, e

hoje vem a pé?

- E verdade! - acrescentou o outro.

- Se ele vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois até o

terem a jeito de tiro, mas longe daqui, percebem vocês? - disse Baltasar

Coutinho.

- Sim, senhor: mas se ele sal. de casa do pai, e entra sem nos dar

tempo?

- Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já lhe disse. Basta de

palavreado. Vão esconder-se atrás da Igreja, e não adormeçam.

Debandou o grupo, e Baltasar ficou alguns momentos encostado ao

muro. Soaram os três quarto depois da dez. O de Castro-d'Aire colocou

o ouvido à porta, e retirou-se aceleradamente, ouvindo o rumor da

folhagem seca que Teresa vinha pisando.

Apenas Baltasar, cosido com o muro, desaparecera, um vulto assomou

do outro lado a passo rápido. Não parou: foi direito a todos os pontos

onde uma sombra podia figurar um homem. Rodeou a igreja, que

estava a duzentos passos de distância. Viu os dois vultos direitos com o

recanto que formava a junção da capela-mor, e sobre o qual caíram as

33

sombras da torre. Fitou-os de passagem, e suspeitou; não os conheceu,

mas eles disseram entre si, depois que ele desaparecera:

- E o João da Cruz, ferrador, ou o diabo por ele!...

- Que fará a estas horas por aqui?!

- Eu sei!

- Não desconfias que ele entre nisto?

- Agora! se entrasse, era por nós. Não sabes que ele foi mochila do

nosso amo?

- Pois então que medo tens?

- Não há medo; mas também sei que foi o corregedor que o livrou da

forca...

- Isso que tem! O corregedor não se importa com isso, nem sabe que o

filho cá está...

- Assim será; mas não estou muito contente... Ele é homem dos

diabos...

- Deixá-lo ser... Tanto entram as balas nele como noutro...

A discussão continuou sobre várias conjeturas. De tudo o que eles

disseram uma coisa era certíssima: ser o vulto o João da Cruz, ferrador.

Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Baltasar

ouviram o remoto tropel da cavalgadura.

Ao tempo que eles saíam do seu esconderijo, saía João da Cruz à frente

do cavaleiro. Simão aperrou as pistolas, e o arreeiro uma clavina.

- Não há novidade - disse o ferrador -; mas saiba vossa senhoria que já

podia estar em baixo do cavalo com quatro zagalotes no peito.

O arreeiro reconheceu o cunhado, e disse:

- És tu, João?

- Sou eu. Vim primeiro que tu.

Simão estendeu a mão ao ferrador, e disse, comovido.

- Dê cá a sua mão; quero sentir na minha a mão dum homem honrado.

- Nas ocasiões é que se conhecem os homens - redargüiu o ferrador. -

Ora vamos... não há tempo para falatórios. O senhor doutor tem uma

espera.

- Tenho - disse Simão.

- Atrás da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer; mas não

se me dava de jurar que são criados do Sr. Baltasar. Salte abaixo do

cavalo, que há de haver mostarda. Eu disse-lhe que não viesse; mas

vossa senhoria veio, e agora é andar com a cara para frente.

- Olhe que eu não tremo, mestre João! - disse o filho do corregedor.

- Bem sei que não; mas, à vista do inimigo, veremos.

Simão tinha apeado. O ferrador tomou as rédeas do cavalo, recuou

alguns passos na rua, e foi prendê-lo à argola da parede duma

estalagem.

34

Voltou, e disse a Simão que o seguisse a ele e ao cunhado na distância

de vinte passos; e que, se os visse parar perto do quintal de

Albuquerque, não passasse do ponto donde os visse.

Quis o acadêmico protestar contra um plano que o humilhava como

protegido pela defesa dos dois homens; o ferrador, porém, não admitiu

a réplica

- Faça o que eu lhe digo, fidalgo - disse ele com energia.

João da Cruz e o cunhado, espiando todas as esquinas, chegaram

defronte do quintal de Teresa, e viram, um vulto a sumir-se no ângulo

da parede.

- Vamos sobre eles - disse o ferrador - que lá passaram para o adro da

igreja; nestes entrementes, o doutor chegará à porta do quintal e entra;

depois voltaremos para lhe guardar a saída.

Neste propósito, moveram-se apressados, e Simão Botelho caminhou

com as pistolas aperradas na direção da porta.

Em frente do muro do jardim de Teresa haviam uma cascalheira

escarpada. que se esplainava depois numa alameda sombria.

Os dois criados de Baltasar, quando o tropel do cavalo parou,

recordaram as ordens do amo, no caso de vir a pé Simão. Buscaram

sitio azado para o espreitarem na saída, e entraram na alameda quando

o acadêmico chegara à porta do quintal.

- Agora está seguro - disse um,

- Se lá não ficar dentro... - respondeu o outro, vendo-o entrar, e fecharse

a porta.

- Mas além vêm dois homens... - disse o mais assustado, olhando para

a outra entrada da alameda.

- E vêm direitos a nós... Aperra lá a cravina...

- O melhor é retirarmos. Nós estamos à espera do outro, e não deste.

Vamos embora daqui...

Este não esperou convencer o companheiro: desceu a ribanceira do

cascalho. O mais intrépido teve também a prudência de todos os

assassinos assalariados: seguiu o assustadiço, e deu-lhe razão, quando

ouviu após de si os passos velozes dos perseguidores. Saiu-lhes o amo

de frente quando dobravam a esquina do quintal, disse-lhes:

- Vocês a que fogem, seus poltrões?

Os homens pararam de envergonhados, aperrando os bacamartes.

João da Cruz e o arreeiro apareceram, e Baltasar caminhou para eles,

brandando:

- Alto aí!

O ferrador disse ao cunhado:

- Fala-lhe tu, que eu não quero que ele me conheça.

- Quem manda fazer alto? - disse o arreeiro.

- São três clavinas - respondeu Baltasar.

35

- Olha se os demoras a dar tempo que o doutor saía - disse João da

Cruz ao ouvido do arreeiro.

- Pois nós cá estamos parados - replicou o criado de Simão. - Que nos

querem vocês?

- Quero saber o que têm que fazer neste sítio.

- E vocês o que fazem por cá?

- Não admito perguntas - disse o de Castro-d'Aire, aventurando alguns

passos vacilantes para a frente. - Quero saber quem são.

Mestre João disse ao ouvido do cunhado:

- Diz-lhe que, se dá mais um passo, que o arrebentas.

O arreeiro repetiu a cláusula, e Baltasar parou.

Um dos criados deles chamou-o ao lado para lhe dizer que aquele dos

dois que não falava parecia ser o João da Cruz. O morgado duvidou, e

quis esclarecer-se; mas o ferrador ouvira as palavras do criado, e disse

ao cunhado:

- Vem comigo, que eles conhecem-me.

Dizendo, voltou as costas ao grupo, e caminhou ao longo do quintal de

Tadeu de Albuquerque. Os criados de Baltasar, gloriosos da retirada,

como de uma derrota certa, apressaram o passo, na cola dos supostos

fugitivos. O morgado ainda lhes disse que os não seguissem; mas eles,

momentos antes cobardes, queriam desforrar-se agora, correndo após o

inimigo tanto quanto lhe tinham fugido antes.

Simão Botelho ouvira passos ligeiros, e, compelido pelo susto de Teresa,

abrira a porta do quintal, sem saber ainda de quem fossem os passos.

João da Cruz, com ar galhofeiro, já quando os perseguidores se viam,

disse ao filho do corregedor, se estavam ajustando o casamento, que

não havia pano para mangas.

Simão entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Teresa, e

retirou-se. Queria ele reconhecer os dois vultos parados a distância, mas

João da Cruz, com o tom imperioso de quem obriga à submissão, disse

ao filho do corregedor:

- Vá por onde veio, e não olhe para trás. Simão foi indo até encontrar o

cavalo. Montou, e esperou os dois inalteráveis guardas que o seguiam a

passo vagaroso. Maravilhara-os o súbito desaparecimento dos criados

de Baltasar, e recearam-se de alguma espera fora da cidade. O ferrador

conhecia o atalho que podia levar os da emboscada ao caminho, e

revelou o seu receio a Simão, dizendo-lhe que picasse a toda a brida,

que ele e o cunhado lá iriam ter. O acadêmico recebeu com enfado a

advertência, admoestando-os a que o não tivessem em tal vil preço. E

acintemente sofreu as rédeas para não forçar os homens a aligeirar o

passo.

- Vá como quiser - disse mestre João - que nós vamos por fora do

caminho.

36

E subiram a uma rampa de olivais, para tornarem a descer encobertos

por moitas de giesta, cosendo-se aos torcicolos duma parede paralela

com a estrada.

- O atalho vai acolá onde a serra faz aquele cotovelo - disse o ferrador

ao cunhado, - hão de ali passar, ou já passaram. A estrada vai mesmo

na quebrada daquele outeirinho. Os homens é dali que vão atirar,

encobertos pelos sobreiros. Vamos depressa...

E um pouco descobertos, e outro curvados à sombra das devesas,

chegaram a um valado donde ouviram os passos dos dois homens que

atravessavam o pontilhão de um córrego.

- Já não vamos a tempo - disse aflito o João da Cruz - os homens vão

atirar-lhe, porque o cavalo trupa cá muito atrás.

E corriam já sem temor de serem vistos, porque os outros tinham

dobrado o outeiro, em cujo vale corria a estrada.

- Os homens vão atirar-lhe... - disse o ferrador.

- Gritemos daqui ao doutor que não vá para diante.

- Já não é tempo... Ou o matem ou não matem, quando voltarem são

nossos.

Tinham já passado o pontilhão, e subiam a ladeira quando ouviram dois

tiros.

- Arriba! - exclamou João da Cruz - que não vão meter-se à estrada, se

mataram o fidalgo.

Tinham vencido o chá, esbofados e ansiados, com as davinas aperradas.

Os criados de Baltasar, ao invés da conjetura do ferrador, retrocediam

pelo mesmo atalho, supondo que os companheiros de Simão iam

adiante batendo os pontos azados à emboscada, ou se tinham

retardado.

- Eles aí vêm! disse o arreeíro.

- Nós cá estamos - respondeu o ferrador, sentando-se a coberto de um

cômoro. - Senta-te também, que eu não estou para correr atrás deles.

Os assassinos, a dez passos, viram de frente erguerem-se os dois vulto,

e ladearam cada qual para seu lado, um galgando os socalcos duma

vinha e outro atirando-se a uns silveirais.

- Atira ao da esquerda - disse João da Cruz.

Foram simultâneas as explosões. A pontaria do ferrador fez logo um

cadáver. Os balotes do arreeiro não estremaram o outro entre o

carrascal onde se embrenhara.

A este tempo assomava Simão no teso donde lhe tinham atirado, e

corria ao ponto onde ouvira o segundo tiro.

- É vossa senhoria, fidalgo - bradou o ferrador.

- Sou.

- Não o mataram?

- Creio que não - respondeu Simão.

37

- Este desalmado deixou fugir o melro - tomou João da Cruz - mas o

meu lá está a pernear na vinha. Sempre lhe quero ver as trombas...

O ferrador desceu os três socalcos da vinha, e curvou-se sobre o

cadáver, dizendo:

- Alma de cântaro, se eu tivesse duas clavinas, não ias sozinho para o

inferno.

- Anda daí! - disse o arreeiro - deixa lá esse diabo, que o senhor doutor

está ferido num ombro. Vamos depressa, que está o sangue a escorrerlhe.

- Eu vi duas cabeças a espreitarem-me de cima da ribanceira, e cuidei

que eram vocês - disse Simão, enquanto o ferrador, com a destreza de

hábil cirurgião, lhe enfaixava com lenços o braço ferido. - Parei o cavalo,

e disse: "Olé! há novidade?" Logo que me não responderam, saltei para

terra; mas ainda eu tinha um pé no estribo quando me fizeram fogo.

Quis saltar à ribanceira, mas não pude romper o mato. Dei uma voltar

grande para achar subida, e foi então que dei fé de estar ferido.

- Isto é uma arranhadura - disse João da Cruz - olhe que eu sei disto,

fidalgo! Estou afeito a curar muitas feridas.

- Nos burros, mestre João? - disse o ferido, sorrindo.

- E nos cristãos também, senhor doutor. Olhe que houve em Portugal

um rei que não queria outro médico senão um alveitar. Hei de mostrarlhe

o meu corpo, que está uma rede de facadas, e nunca fui ao

cirurgião. Com ceroto e vinagre sou capaz de ir ressuscitar aquela alma

do diabo que ali está a escutar a cavalaria.

Nisto ouviu-se um leve rumor de folhagem no matagal para onde tinha

saltado o companheiro do morto.

João da Cruz, como galo de fino olfato, fitou a orelha e resmungou:

- Querem vocês ver que eles se armam!.

Dar-se-á caso que o outro ainda esteja por ali a tremer maleitas?

O rumor continuou, e logo um bando de pássaros rompeu dentre a

folhagem, chilreando.

- O homem está ali - tornou o ferrador. - Passe-me cá uma pistola,

senhor Simão!

Correu mestre João, e ao mesmo tempo uma grande restolhada se fez

entre as moitas de codessos e urzes.

- Ele estrinça lenha como um porco do monte! - exclamou o ferrador, -

Ó cunhado, bate este mato com alguns penedos; quero ver sair o javali

da moita!..

Para o outro lado da bouça estava um plaino cultivado. Simão, rodeando

a sebe, conseguira saltar ao campo por sobre a pedra dum agüeiro.

- Tenha lá mão, mestre; não vá você atirar-me! - bradou Simão ao

ferrador.

- Pois o fidalgo já aí anda!? Então está fechado o cerco. Eu cá vou fazer

de furão. Se este nos escapa, não há nada seguro neste mundo!

38

Não se enganaram. O criado de Baltasar Coutínho, quando se atirara

desamparado à brenha, deslocara um joelho, e caíra atordoado. O

arreeiro não examinou o efeito do tiro, porque atirara à ventura, e

achava natural que o fugitivo se não molestasse. Quando volveu a si do

aturdimento da queda, o homem arrastou-se até encontrar um cercado

de árvores silvestres, em que pernoitava a passarinhada. Como os

melros cacarejassem, esvoaçando, o criado de Baltasar retrocedeu para

o mato, cuidando que aí escaparia; mas o arreeiro jogava enormes

calhaus em todas as direções, e alguns acercavam mais que as balas do

seu bacamarte. João da Cruz tirou do bolso da jaqueta um podão, e

começou a cortar a selva de carvalhas novas e giestas que se

emaranhavam em redor do esconderijo. Já cansado, porém, e vendo o

pouco fruto do trabalho, disse ao arreeiro:

- Petisca lume, vai ali dentro buscar um pouco de restolho seco, e

vamos pegar fogo ao mato, que este ladrão há de morrer assado.

O perseguido, quando tal ouviu, tirou do maior perigo coragem para

fugir, rompendo a espessura e saltando a parede da tapada para o

campo do restolho em que o arreeiro andava apanhando palha e Simão

esperava o desfecho da montaria. Correram a um tempo o arreeiro e o

acadêmico sobre ele, O fugitivo, sentindo-se alcançado, lançou-se de

joelhos e mãos erguidas, pedindo perdão, e dizendo que o amo o

obrigaria àquela desgraça. Já a coronha do bacamarte do arreeiro lhe ia

direita ao peito, quando Simão lhe reteve o braço.

- Não se bate num homem ajoelhado! - disse o moço - Levanta-te,

rapaz!

- Eu não posso, senhor. Tenho uma perna quebrada e estou aleijado

para a minha vida!

Neste comenos chegou o ferrador, e exclamou:

- Pois esse tratante ainda está vivo!?

E correu sobre ele com o podão.

- Não mate o homem, senhor João! - disse o filho do corregedor'.

- Que o não mate! Essa é de cabo de esquadra! Com que então o fidalgo

quer pagar-me com a forca o favor de o acompanhar... hein?

- Com a forca?! - atalhou Simão.

- Pudera não! Quer que este homem fique para ir contar a história?

Acha bonito? Lá vossa senhoria, como é filho de ministro, não terá

perigo; mas eu, que sou ferrador, posso contar que desta vez tenho o

baraço no pescoço. Não me faz jeito o negócio. Deixe-me cá com o

homem...

- Não o mate, senhor João; peço-lhe eu que o deixe ir. Uma testemunha

não nos pode fazer mal.

- O quê! - redargüiu o ferrador - vossa senhoria é doutor, saberá muito,

mas de justiça não sabe nada. e há de perdoar o meu atrevimento.

Basta uma só testemunha para guiar a justiça na devassa. As duas por

39

três, uma testemunha de vista, e quatro de ouvir dizer, com o fidalgo

Castro-d'Aire a mexer os pauzinhos, é forca certa, como dois e dois

serem quatro.

- Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para Castrod'Aire

- exclamou o homem.

- Deixe-o ficar, João da Cruz... vamos embora...

- Isso! - acudiu o ferrador - Chame-me João da Cruz... para este maroto

ficar bem certo de que sou o João da Cruz... Como efeito, não sei o que

me parece vossa senhoria querer deixar com vida uma alma do diabo

que lhe deu um tiro para o matar.

- Pois sim, tem você razão; mas eu não sei castigar miseráveis que não

resistem.

- E, se ele o tivesse matado, castigava-o? Responda a isto, senhor

doutor.

- Vamos embora - tornou Simão - deixemos por aí esse miserável.

Mestre João cismou alguns momentos, coçando a cabeça, e resmungou

com descontentamento:

- Vamos lá. .. Quem o seu inimigo poupa nas mãos lhe morre.

Tinham já saído do plano e saltado o tapada, e iam descendo para a

estrada, quando o ferrador exclamou:

- Lá me ficou a minha clavina escostada à sebe... Vão indo que eu

venho já.

O arreeiro conduzia o cavalo, que pacificamente estivera tosando a relva

das paredes marginais da estrada, quando Simão ouviu gritos.

Conjeturou com certeza o que era.

- O João lá está a fazer justiça! - disse o arreeiro - Deixá-lo lá, meu

amo, que ele é homem que sabe o que faz.

João da Cruz apareceu daí a pouco, limpando com fentos o podão

ensangüentado.

- Você é cruel, sr. João - disse o acadêmico.

- Não sou cruel - disse o ferrador - o fidalgo está enganado comigo; é

que, diz lá o ditado, morrer por morrer, morra meu pai, que é mais

velho. Tanto faz matar um como dois. Quando se está com a mão na

massa, tanto faz amassar um alqueire como três. As obras devem ser

acabadas, ou então o melhor é não se meter a gente nelas. Agora levo a

minha consciência sossegada. A justiça que prove, se quiser; mas não

há de ser porque lho digam aqueles dois que eu mandei de presente ao

diabo.

Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de

se ter ligado com tal homem,

VII

40

O ferimento de Simão Botelho era melindroso demais para obedecer

prontamente ao curativo do ferrador, enfronhado em aforismos de

alveitaria. A bala passara-lhe de revés a porção muscular do braço

esquerdo; mas algum vaso importante rompera, que não bastavam

compressas a vedar-lhe o sangue. Horas depois de ferido, o acadêmico

deitou-se febril, deixando-se medicar pelo ferrador. O arreeiro partiu

para Coimbra, encarregado de espalhar a notícia de ter ficado no Porto

Simão Botelho.

Mais que as dores e o receio da amputação, o mortificava a ânsia de

saber novas de Teresa. João da Cruz estava sempre de sobre-rolda,

precavido contra algum procedimento judicial por suspeitas dele. As

pessoas que vinham de feirar na cidade contavam todas que dois

homens tinham aparecido mortos, e constava serem criados dum fidalgo

de Castrod'Aire, Ninguém, porém, ouvira imputar o assassínio a

determinadas pessoas.

Na tarde desse dia recebeu Simão a seguinte carta de Teresa:

"Deus permita que tenhas chegado sem perigo a casa dessa boa gente.

Eu não sei o que se passa. mas há coisa misteriosa que eu não posso

adivinhar. Meu pai tem estado toda a manhã fechado com o primo, e a

mim não me deixa sair do quarto. Mandou-me tirar o tinteiro; mas eu

felizmente estava prevenida com outro. Nossa Senhora quis que a pobre

viesse pedir esmola debaixo da janela do meu quarto; senão, eu nem

tinha modo de lhe dar sinal para ela esperar esta carta. Não sei o que

ela me disse Falou-me em criados mortos; mas eu não pude entender...

Tua mana Rita está-me acenando por trás dos vidros do teu quarto...

Disse-me agora tua mana que os moços de meu primo tinham aparecido

mortos perto da estrada. Agora já sei tudo. Estive para lhe dizer que tu

aí estás, mas não me deram tempo. Meu pai de hora a hora dá passeios

no corredor, e solta uns ais muitos altos.

Ó meu querido Simão, que será feito de ti?... Estás ferido? Serei eu a

causa da tua morte?

Dize-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge

desses sítios: vai para Coimbra, e espera que o tempo melhore a nossa

situação. Tem confiança nesta desgraçada, que é digna da tua

dedicação... Chega a pobre: não quero demorá-la mais... Perguntei-lhe

se dizia de ti alguma coisa, e ela respondeu que não. Deus o queira".

Respondeu Simão a querer tranqüilizar o ânimo de Tereza. Do seu

sofrimento falava tão de passagem, que dava a supor que nem o

curativo era necessário. Prometia partir para Coimbra logo que o

pudesse fazer sem receio de Teresa sofrer na sua ausência. Animava-a

a chamá-lo assim que as ameaças do convento passassem a ser

realizadas.

41

Entretanto, Baltasar Coutinho, chamado às autoridades judiciárias para

esclarecer a devassa instaurada, respondeu que efetivamente os

homens mortos eram seus criados, de quem ele e sua família se

acompanhara de Castro-d'Aire. Acrescentou que não sabia que eles

tivessem inimigos em Viseu, nem tinha contra alguém as mais leves

presunções.

Os mais próximos vizinhos da localidade onde os cadáveres tinham

aparecido apenas depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao

mesmo tempo, e outro pouco depois. Um apenas adiantava coisa que

não podia alumiar a justiça, e vinha a ser que o mato, nas vizinhanças

do local, fora chapotado. Nesta escuridade a justiça não podia dar passo

algum.

Tadeu de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida de

Simão Botelho. Fora seu ó alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa

das saídas freqüentes de Teresa na noite do baile. Tanto ao velho como

ao morgado convinha apagar algum indício que pudesse envolvê-los no

mistério daquelas duas mortes. Os criados não mereciam as penas dum

desforço que implicasse o desdouro de seus amos. Provas contra Simão

Botelho não podiam aduzi-las. Aquela hora o supunham eles a caminho

de Coimbra, ou refugiado em casa de seu pai. Restava-lhes ainda a

esperança de que ele tivesse sido ferido, e fosse acabar longe do local

em que o tinham assaltado.

Enquanto a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento do

Porto, e escolheu Monchique, onde era prioresa uma sua próxima

parenta. Escreveu à prelada para lhe preparar aposentos, e ao

procurador para negociar as licenças eclesiásticas para a entrada.

Todavia, receando o velho algum incidente no espaço de tempo que

medeava até se conseguirem as licenças, resolveu não ter consigo

Teresa, e solicitou a retenção temporária dela num convento de Viseu.

Acabara Teresa de ler e esconder no seio a resposta de Simão Botelho

que a mendiga lhe passara ao escurecer, pendente de uma linha,

quando o pai entrou no seu quarto, e a mandou vestir-se. A menina

obedeceu, tomando uma capa e um lenço,

- Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus apelidos -

disse com severidade o velho.

- Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sair à noite... - disse

Teresa.

- E a senhora sabe para onde vai?

- Não sei... meu pai.

- Então vista-se, e não me dê leis.

- Mas, meu pai. atenda-me um momento.

- Diga.

- Se a sua idéia é obrigar-me a casar com meu primo...

- E daí?

42

- De certo não caso; morro, e morro contente, mas não caso.

- Nem ele a quer. A senhora é indigna de Baltasar Coutinho. Um homem

do meu sangue não aceita para esposa uma mulher que fala de noite

aos amantes nos quintais. Vista-se depressa, que vai para um convento.

- Prontamente, meu pai. Esse destino lho pedi eu muitas vezes.

- Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas primas

esperam-na para a acompanharem.

Quando se viu sozinha, Teresa debulhou-se em lágrimas, e quis

escrever a Simão. Aquela hora quem lhe levaria a carta? Apelou para o

retábulo da Virgem, que ela fizera confidente do seu amor. Pediu-lhe de

joelhos que a protegesse, e desse forças a Simão para resistir ao golpe,

e guardar-lhe constância através dos trabalhos que sucedessem, Depois

vestiu-se, comprimindo contra o seio um embrulho em que levava o

tinteiro, o papel e o macete de cartas de Simão. Saiu do seu quarto,

relanceando os olhos lacrimosos para o painel da Virgem, e,

encontrando o pai, pediu-lhe licença para levar consigo aquela devota

imagem.

- Lá irá ter - respondeu ele. - Se tivesse tanta vergonha como devoção,

seria mais feliz do que há de ser.

Uma das primas, irmãs de Baltasar, chamou-a de parte. e segredou-lhe:

- Ó menina, estava ainda na tua mão dares remédio à desordem desta

casa...

- Qual remédio?! - perguntou Teresa com artificial seriedade.

- Diz a teu pai que não duvidas casar com o mano Baltasar...

- Primo Baltasar não me quer - replicou ela, sorrindo.

- Quem te disse isso, Teresinha?

- Disse-me meu pai.

- Deixa falar teu pai, está desatinado com o amor que te tem. Queres tu

que eu lhe fale.

- Para quê?

- Para se remediar deste modo a desgraça de todos nós.

- Estás a brincar, prima! - redargüiu Teresa. - Eu hei de ser tua cunhada

quando não tiver coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro

homem. Queria viver para ele; mas, se quiserem que eu morra por ele,

abençoarei' todos os meus algozes. Podes dizer isto ao primo Baltasar e

dize-lhe antes que te esqueça.

- Então? Vamos! - disse o velho.

- Estou pronta, meu pai.

Abriu-se a portaria do mosteiro. Teresa entrou sem uma lágrima. Beijou

a mão de seu pai, que ele não ousou recusar-lhe na presença das

freiras. Abraçou suas primas, com semblante de regozijo; e, ao fecharse

a porta, exclamou, com grande espanto das monjas:

- Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.

43

As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra "coração"

uma heresia, uma blasfêmia proferida na casa do Senhor.

- Que diz a menina?! - perguntou a prioresa, fitando-a por cima dos

óculos, e apanhando no lenço de Alcobaça a destilação do esturrinho.

- Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.

- Não diga - minha senhora - atalhou a escrivã.

- Como hei de dizer?

- Diga: "nossa madre prioresa".

- Pois sim, nossa madre prioresa, disse eu que me sentia aqui muito

bem.

- Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir bem

- tornou a nossa madre prioresa.

- Não?! - disse Teresa com sincera admiração.

- Quem para aqui vem, menina, há de mortificar o espírito, e deixar lá

fora as paixões mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra de

noviças, a quem compete encaminhá-la e dirigi-la.

Teresa não redargüiu: fez um gesto de respeito à mestra de noviças, e

seguiu o caminho que a prelada lhe ia indicando.

A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua

hóspeda enquanto ali estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pai

escolheria aquele convento ou outro.

- Que importa que seja um ou outro? - disse Teresa.

- É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem

rica das bentas ou bernardas.

- Professe! - exclamou Teresa. - Eu não quero ser freira aqui, nem

noutra parte.

- A senhora há de ser o que seu pai quiser que seja.

- Freira?! A isso não pode ninguém obrigar-me! -recalcitrou Teresa.

- Isso assim é - retorquiu a prioresa - mas, como a menina tem de

noviciado um ano, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá

que não há vida mais descansada para o corpo, nem mais saudável para

a alma.

- Mas a nossa madre - tornou Teresa, sorrindo, como se a ironia lhe

fosse habitual - já disse que a estas casas ninguém vem para se sentir

bem...

- É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações e

obrigações de coro e de serviços para que nem sempre o espírito está

bem disposto. Ora vês aí. Mas, em comparação do que lá vai pelo

mundo, o convento é um paraíso. Aqui não há paixões, nem cuidados

que tirem o sono, nem a vontade de comer, bendito seja o Senhor!

Vive-nos umas com as outras como Deus com os anjos. O que uma quer

querem todas. Más línguas é coisa que a menina não há de achar aqui,

nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Enfim, Deus fará o

que for servido. Eu vou à cozinha buscar a ceia da menina, e já volto.

44

Aqui a deixo com a senhora madre organista, que é uma pomba, e com

a nossa mestra de noviças, que sabe dizer melhor que eu o que é a

virtude nestas santas casas.

Apenas a prioresa voltou as costas, disse a organista à mestra de

noviças:

- Que impostora!

- E que estúpida! - acudiu a outra. - A menina não se fie nesta

trapalhona, e veja se seu pai lhe dá outra companhia enquanto cá

estiver, que a prioresa é a maior intriguista do convento. Depois que fez

sessenta anos, fala das paixões do mundo como quem as conhece por

dentro e por fora. Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos

dava na casa; depois de velha era a mais ridícula porque ainda queria

amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre este

mostrengo a fazer missões e a curar indigestões.

Teresa, apesar da sua dor, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se

da vida de Deus com os anjos que as esposas do Senhor ali viviam, no

dizer da madre prioresa.

Pouco depois, entrou a prelada com a ceia, e saíram as duas freiras.

- Que lhe pareceram as duas religiosas que ficaram com a menina? -

disse ela a Teresa.

- Pareceram-me muito bem.

A velha distendeu os beiços matizados de meandros de esturrinho

líquido, e regougou:

- Hum!... Está feito, está feito!... Ainda não são das piores; mas, se

fossem melhores, não se perdia nada... Ora vamos a isto, menina; aqui

tem duas pernas de galinha e um caldo que o podem comer os anjos.

- Eu não como nada, minha senhora - disse Teresa.

- Ora essa! Não come nada?! Há de comer; sem comer ninguém resiste.

Paixões... que as leve o porco-sujo!... As mulheres é que ficam

logradas, e eles não têm que perder!... Que eu, cá de mim, até ao

presente, Deus louvado, não sei o que sejam paixões; mas quem tem

cinqüenta e cinco anos de convento, tem muita experiência do que vê

penar às outras doidivanas. E, para não ir mais longe, estas duas que

daqui saíram têm pagado bem o seu tributo à asneira, Deus me perdoe,

se peco. A organista tem já os seus quarenta bons, e ainda vai ao

locutório derreter-se em finezas; a outra, apesar de ser mestra de

noviças, à falta doutra que quisesse sê-lo, se eu lhe não andasse com o

olho em cima, estragava-me as raparigas.

Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã,

que vinha, palitando os dentes, pedir à prelada um copinho de certo

vinho estomacal com que todas as noites era brindada.

- Estava eu a dizer a esta menina as peças que são a organista e a

mestra - disse a prioresa.

45

- Oh! são para o que eu lhe prestar! Lá foram ambas para a cela da

porteira. A esta hora está a menina a ser cortada por aquelas línguas,

que não perdoam a ninguém.

- Vais tu ver se ouves alguma coisa, minha flor? - disse a prelada.

A escrivã, contente da missão, foi imperceptivelmente ao longo dos

dormitórios até parar a uma porta, que não vedava o ruído estridente

das risadas.

No entanto, dizia a prelada a Teresa:

- Esta escrivã não é má rapariga. Só tem o defeito de se tomar da

pingoleta; depois, não há quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta

tudo em vinho, e tem ocasiões de entrar no coro a fazer ss que é

mesmo uma desgraça. Não tem outro defeito; é uma alma lavada, e

amiga da sua amiga. ~ verdade, que, às vezes... (aqui a prelada

ergueu-se a escutar nos dormitórios, e fechou por dentro a porta); é

verdade que, às vezes, quando anda azoratada, dá por paus e por

pedras, e descobre os defeitos das suas amigas. A mim já ela me

assacou um aleive, dizendo que eu, quando saía a ares, não ia só a

ares, e andava por lá a fazer o que fazem as outras. Forte pouca

vergonha! Lá que outra falasse, vá; mas ela, que tem sempre uns

namorados pandílhas que bebem com ela na grade, isso lá me custa;

mas, enfim, não há ninguém perfeito!... Boa rapariga é ela... se não

fosse aquele maldito vício...

Como tocasse ao coro nesta ocasião, a veneranda prioresa bebeu o

segundo cálice do vinho estomacal, e disse a Teresa que a esperasse um

quarto de hora, que ela ia ao coro, e pouco se demoraria. Tinha ela

saído, quando a escrivã entrou a tempo que Teresa, com as mãos

abertas sobre a face, dizia em si: "Um convento, meu Deus! Isto é que é

um convento?"

- Está sozinha? - disse a escrivã.

- Estou, minha senhora.

- Pois aquela grosseira vai-se embora, e deixa uma hóspeda sozinha?!

Bem se vê que é filha de funileiro!... Pois tinha tempo de ter prática do

mundo, que tem andado por lá que farte... Eu havia de ir ao coro... Mas

não vou, para lhe fazer companhia, menina.

- Vá, vá minha senhora, que eu fico bem sozinha - disse Teresa, com a

esperança de poder desafogar em lágrimas a sua aflição.

- Não vou... A menina aqui estarrecia de medo; mas a prelada não tarda

aí. Ela, se pode escapar-se do coro, não para lá muito tempo. Apostar

que ela lhe esteve a falar mal de mim?

- Não, minha senhora, pelo contrário...

- Ora, diga a verdade, menina! Eu sei que esta cegonha não fala bem de

ninguém. Para ela tudo são libertinas e bêbedas.

- Nada, não, minha senhora; nada me disse a respeito de alguma freira,

46

- E, se disse, deixá-la dizer. Ela o vinho não o bebe, suga-o; é uma

esponja viva. Enquanto à libertinagem, tomara eu tantos mil cruzados

como de amantes ela tem tido! Faz lá uma pequena idéia, menina!...

A escrivã bebeu um cálice do vinho da sua prelada, e continuou:

- Faz lá uma pequena idéia! Ela é velhíssima como a sé. Quando eu

professei, já ela era velha como agora, com pouca diferença. Ora eu sou

freira há vinte e seis anos. Calcule a menina quantas arrobas de

esturrínho ela tem atulhado naqueles narizes! Pois olhe, quer me creia,

quer não, tenho-lhe conhecido mais de uma dúzia de chichisbéus, não

falando do padre capelão, que esse ainda agora lhe fornece a garrafeira,

à nossa custa, entende-se. É uma dissipadora dos rendimentos da casa.

Eu, que sou escrivã, é que sei o que ela rouba. Eu tenho imensa pena

de ver a menina hospedada em casa desta hipócrita. Não se deixe levar

das imposturices dela, meu anjinho. Eu sei que seu pai lhe mandou

falar, e a encarregou de a não deixar escrever, nem receber cartas; mas

olhe, minha filha, se quiser escrever, eu dou-lhe tinteiro, papel, obreias

e o meu quarto, se para lá quiser ir escrever. Se tem alguém que lhe

escreva, diga-lhe que mande as cartas em meu nome; eu chamo-me

Dionísia da Imaculada Conceição.

- Muita agradecida, minha senhora - disse Teresa, animada pelo

oferecimento. - Quem me dera poder mandar um recado a uma pobre

que mora no beco do...

- O que quiser, menina. Eu mando lá logo que for dia. Esteja

descansada. Não se fie de alguém, senão de mim. Olhe que a mestra de

noviças e a organista são duas falsas. Não lhes dê trela, que, se as

admite à sua confiança, está perdida. Ai vem a lesma... Falemos noutra

coisa...

A prelada vinha entrando, e a escrivã prosseguiu assim:

- Não há, não há nada mais agradável que a vida do convento quando

se tem a fortuna de ter uma prelada como a nossa... Aí! eras tu,

menina? Olha se estivéssemos a falar mal de ti!

- Eu sei que tu nunca falas mal de mim - disse a prelada, piscando o

olho a Teresa. - Aí está essa menina que diga o que eu lhe estive a dizer

das tuas boas qualidades...

- Pois o que eu disse de ti - respondeu sóror Dionísia da Imaculada

Conceição - não precisas de perguntar porque felizmente ouviste o que

eu estava dizendo. Oxalá que se pudesse dizer o mesmo das outras que

desonram a casa, e trazem aqui tudo intrigado numa meada, que é

mesmo coisa de pecado!

- Então não vais ao coro, Nini? - tornou a prioresa.

- Já agora é tarde... Tu absolves-me da falta, sim?

- Absolvo, absolvo; mas dou-te como penitência beberes um copinho...

- Do estomacal?

- Pudera!

47

Dionisia cumpriu a penitência, e saiu para, dizia ela deixar a prelada na

sua hora de oração.

Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do

convento onde Tadeu de Albuquerque mandara sua filha a respirar o

puríssimo ar dos anjos, enquanto se lhe preparava crisol mais depurador

dos sedimentos do vício no convento de Manchique.

Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas

de vida conventual. Ignorava ela que o mundo tinha daquilo. Ouvira

falar dos mosteiros como de um refúgio da virtude, da inocência e das

esperanças imorredoiras. Algumas cartas lera de sua tia, prelada em

Monchique, e por elas formara conceito do que devia ser uma santa.

Daquelas mesmas dominicanas, em cuja casa estava, ouvira dizer às

velhas e devotas fidalgas de Víseu virtudes, maravilhas de caridade, e

até milagres. Que desilusão tão triste e, ao mesmo tempo, que ânsia de

fugir dali!

A cama de Teresa estava na mesma cela da prioresa, em alcova.

separada, com cortinas de cassa.

Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se, querendo, perguntoulhe

a menina se poderia escrever a seu pai. A freira respondeu que no

dia seguinte o faria, posto que o senhor Albuquerque ordenasse que sua

filha não escrevesse; assim mesmo, ajuntou ela, que lho não proibiria,

se tivesse tinteiro e papel na cela.

Teresa deitou-se, e a prelada ajoelhou diante dum oratório, rezando a

coroa a meia voz, Se o murmúrio da oração enfadasse a hóspeda, não

teria ela muita razão de queixa, porque a devota monja, ao segundo

Padre-nosso, cabeceava de modo que já não atinou com a primeira Ave-

Maria. Levantou-se, cambaleando uma mesura às imagens do santuário,

foi deitar-se, e pegou a ressonar.

Teresa afastou sutilmente as cortinas do quarto, e tirou de entre o seu

fato o tinteiro de tarraxa e o papel.

A lâmpada do oratório lançava um frouxo raio sobre a cadeira em que

Teresa pusera os seus vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da

cadeira, e escreveu a Simão, relatando-lhe minuciosamente os sucessos

daquele dia. A carta rematava assim:

"Não receies nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem

leves, se os comparo aos que tens padecido por amor de mim. A

desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus

projetos. São alguns dias de tempestade, e mais nada. Qualquer nova

resolução que meu pai tome dir-te-ei logo, podendo, ou quando puder.

A falta das minhas noticias deves atribuí-la sempre ao impossível. Amame

assim desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que

mais precisam de amor e de conforto. Vou ver se posso esquecer-me,

dormindo. Como isto é triste, meu querido amigo!... Adeus".

48

VIII

Mariana, a filha de João da Cruz, quando viu seu pai pensar a chaga do

braço de Simão, perdeu os sentidos. O ferrador riu estrondosamente da

fraqueza da moça, e o acadêmico achou estranha sensibilidade em

mulher afeita a curar as feridas com que seu pai vinha laureado de

todas as feiras e romarias.

- Não há ainda um ano que me fizeram três buracos na cabeça, quando

eu fui à Senhora dos Remédios, a Lamego, e foi ela que me tosqueou e

rapou o casco à navalha - disse o ferrador. - Pelo que vejo, o sangue do

fidalgo deu volta ao estômago da rapariga!... Estamos então bem

aviados! Eu tenho cá a minha vida, e queria que ela fosse a enfermeira

do meu doente... És, ou não és, rapariga? - disse ele à filha quando ela

abriu os olhos, com semblante de envergonhada da sua fraqueza.

- Serei com muito gosto, se o pai quiser.

- Pois, então, moça, se hás de ir costurar para a varanda, vem aqui para

a beira do senhor Simão. Dá-lhe caldos a miúdo, e trata-lhe da ferida;

vinagre e mais vinagre, quando ela estiver assim a modo de roxa.

Conversa com ele, não o deixes estar a malucar, nem escrever muito,

que não é bom quando se está fraco do miolo. E vossa senhoria não

tenha aquelas de cerimônia, nem me diga à Mariana - a menina isto, a

menina aquilo. É - rapariga, da cá um caldo; rapariga, lava-me o braço,

da cá as compressas - e nada de políticas. Ela está aqui como sua

criada, porque eu já lhe disse que, se não fosse o pai de vossa senhoria,

já ela há muito tempo que andava por aí às esmolas, ou pior ainda. E

verdade que eu podia deixar-lhe uns benzinhos ganhos ali a suar na

bigorna há dez anos, afora uns quatrocentos mil réis que herdei de

minha mãe, que Deus haja; mas vossa senhoria bem sabe que, se eu

fosse à forca ou pela barra fora, vinha a justiça, e tomava conta de tudo

para as custas.

- Vossemecê tem uma casinha sofrível - atalhou Simão - pode,

querendo, casar a sua filha numa boa casa de lavoura.

- Assim ela quisesse. Maridos não lhe faltam; até o alferes da casa da

Igreja a queria, se eu lhe fizesse doação de tudo, que pouco é, mas

ainda quatro mil cruzados bons; o caso é que a moça não tem querido

casar, e eu, a falar a verdade, sou só e mais ela, e também não tenho

grande vontade de ficar sem esta companhia, para quem trabalho como

moiro. Se não fosse ela, fidalgo, muitas asneiras tinha eu feito! Quando

vou às feiras ou romarias, se a levo comigo, não bato, nem apanho;

indo sozinho, é desordem certa. A rapariga já conhece quando a pinga

me sobe ao capacete do alambique; puxa-me pela jaqueta, e por bons

49

modos põe-me fora do arraial. Se alguém chama para beber mais um

quartilho, ela não me deixa ir, e eu acho graça à obediência com que me

deixo guiar pela moça, que me pede que não vá por alma da mãe. Eu

cá, em ela me pedindo por alma da minha santa mulher, já não sei de

que freguesia sou.

Mariana ouvia o pai. escondendo meio rosto no seu alvíssimo avental de

linho. Simão estava-se gozando na simpleza daquele quadro rústico,

mas sublime de naturalidade.

João da Cruz foi chamado para ferrar um cavalo, e despediu-se nestes

termos:

- Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente: trata-o como

quem é e como se fosse teu irmão ou marido.

O rosto de Mariana acerejou-se quando aquela última palavra saiu,

natural como todas, da boca de seu pai.

A moça ficou encostada ao batente da alcova de Simão.

- Não foi nada boa esta praga que lhe caiu em casa, Mariana! - disse o

acadêmico - Fazerem-na enfermeira dum doente, e privarem-na talvez

de ir costurar na sua varanda, e conversar com as pessoas que

passam...

- Que se me dá a mim disso? - respondeu ela, sacudindo o avental, e

baixando o cós ao lugar da cintura com infantil graça.

- Sente-se, Mariana; seu pai disse-lhe que se sentasse... Vá buscar a

sua costura, e dê-me dali um folha de papel e um lápis que está na

carteira.

- Mas o pai também me disse que o não deixasse escrever... - replicou

ela, sorrindo.

- Pouco, não faz mal. Eu escrevo apenas algumas linhas.

- Veja lá o que faz... - tornou ela, dando-lhe o papel e o lápis - Olhe se

alguma carta se perde, e se descobre tudo...

- Tudo o quê, Mariana? Pois sabe alguma coisa.?

- Era preciso que eu fosse tola... Eu não lhe disse já que sabia da sua

amizade a uma menina fidalga da cidade?

- Disse. Mas que tem isso?

- Aconteceu o que eu receava. Vossa senhoria está ai ferido, e toda a

gente fala nuns homens que apareceram mortos.

- Que tenho eu com os homens que apareceram mortos?

- Para que está a fingir-se de novas?! Pois eu não sei que esses homens

eram criados do primo da tal senhora? Parece que vossa senhoria

desconfia de mim, e está a querer guardar um segredo que eu tomara

que ninguém soubesse, para que meu pai e o senhor Simão não tenha

alguns trabalhos maiores...

- Tem razão, Mariana; eu não devia esconder de si o mau encontro que

tivemos.

50

- E Deus queira que seja o último!... Tanto tenho pedido ao Senhor dos

Passos que lhe dê remédio a essa paixão!... O pior futuro é o que ainda

está por passar...

- Não, menina, isto acaba assim: eu vou para Coimbra logo que esteja

bom, e a menina da cidade fica em sua casa.

- Se assim for, já prometi dois arráteis de cera ao Senhor dos Passos;

mas não me diz o coração que vossa senhoria faça o que diz...

- Muito agradecido lhe estou pelo bem que me deseja - disse Simão,

comovido. - Não sei o que lhe fiz para lhe merecer a sua amizade.

- Basta ver o que o seu paizinho fez pelo meu - disse ela, limpando as

lágrimas. - O que seria de mim, se ele me faltasse, e se fosse à forca

como toda a gente dizia!... Eu era ainda muito nova quando ele estava

na enxovia. Teria treze anos; mas estava resolvida a atirar-me ao poço,

se ele fosse condenado à morte. Se o degredassem, então ia com ele; ia

morrer onde ele fosse morrer. Não há dia nenhum que eu não peça a

Deus que dê a seu pai tantos prazeres como estrelas tem o céu. Fui de

propósito à cidade para beijar os pés à sua mãezinha, e vi suas manas,

e uma, que era a mais nova, deu-me uma saía de lapím, que eu ainda

ali tenho guardada como uma relíquia. Depois, cada vez que ia à feira,

dava uma grande volta para ver se acertava de encontrar a senhora D.

Ritinha à janela; e muitas vezes vi o senhor Simão. E talvez não saiba

que eu estava a beber na fonte quando vossa senhoria, há dois para

três anos deu muita pancada nos criados, que era mesmo um rebuliço

que parecia o fim do mundo. Eu vim contar ao pai. e ele caiu ao chão a

dar risadas como um doido... Depois nunca mais o vi senão quando

vossa senhoria entrou com o tio de Coimbra; mas já sabia que vinha

para esta desgraça. porque tinha tido um sonho, em que via muito

sangue, e eu estava a chorar porque via uma pessoa muito minha

amiga a cair numa cova muito funda...

- Isso são sonhos, Mariana!...

- São sonhos, são; mas eu nunca sonhei nada que não acontecesse.

Quando o meu pai matou o almocreve, tinha eu sonhado que o via a dar

um tiro noutro homem; antes de minha mãe morrer, acordei eu a chorar

por ela, e mais ainda viveu dois meses... A gente da cidade ri-se dos

sonhos, mas Deus sabe o que isto é... Aí vem meu pai... Senhor dos

Passos! Não vá ser alguma má nova!...

João da Cruz entrou com uma carta que recebera da pobre do costume.

Enquanto Simão leu a carta escrita do convento, Mariana fitou os seus

grandes olhos azuis no rosto do acadêmico, e, a cada contração da

fronte dele, angustiava-lhe a ela o coração. Não teve mão da sua ânsia,

e perguntou:

- E noticia má?

- Tu és muito atrevida, rapariga! - disse João da Cruz.

51

- Não é, não - atalhou o estudante. - Não é má noticia, Mariana, Senhor

João. deixe-me ter na sua filha uma amiga, que os desgraçados é que

sabem avaliar os amigos.

- Isso é verdade; mas eu não me atrevia a perguntar o que a carta diz.

- Nem eu perguntei, meu pai; foi porque me pareceu que o senhor

Simão estava aflito quando lia.

- E não se enganou - tornou o doente, voltando-se para o ferrador. - O

pai arrastou Teresa ao convento.

- Sempre é patife duma vez! - disse o ferrador, fazendo com os braços

instintivamente um movimento de quem aperta às mãos um pescoço.

Neste, lance, um observador perspicaz veria luzir nos olhos de Mariana

um clarão de inocente alegria.

Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Mariana

espontaneamente lhe chegou, dizendo:

- Enquanto escreve, vou olhar pelo caldinho, que está a ferver.

"E necessário arrancar-te daí - dizia a carta de Simão. - Esse convento

há de ter uma evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a hora em que

devo esperar-te. Se não puderes fugir, essas portas hão de abrir-se

diante da minha cólera. Se daí te mandarem para outro convento mais

longe, avisa-me, que eu irei, sozinho ou acompanhado, roubar-te ao

caminho. É indispensável que te refaças de ânimo para te não

assustarem os arrojos da minha paixão. És minha! Não sei de que me

serve a vida, se a não sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio.

Ser-me-ás fiel na vida e na morte. Não sofras com paciência; luta com

heroísmo. A submissão é uma ignomínia quando o poder paternal é uma

afronta. Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quase bom.

Dize-me uma palavra, chama-me, e eu sentirei que a perda do sangue

não diminui as forças do coração".

Simão pediu a sua carteira, tirou dinheiro em prata, deu-o ao ferrador, e

recomendou-lhe que o entregasse à pobre com a carta.

Depois ficou relendo a de Teresa, e recordando-se da resposta que dera.

Mestre João foi à cozinha, e disse a Mariana:

- Desconfio de uma coisa, rapariga.

- O que é, meu pai?

- O nosso doente está sem dinheiro.

- Porquê? O pai como sabe isso?

- E que ele pediu-me a carteira para tirar dinheiro, e ela pesava tanto

como uma bexiga de porco cheia de vento.

Isto bole-me cá por dentro! Queria oferecer-lhe dinheiro e não sei como

há de ser...

- Eu pensarei nisso, meu pai - disse Mariana. refletindo.

- Pois sim; cogita lá tu, que tens melhores idéias que eu.

52

- E, se o pai não quiser bulir nos seus quatrocentos, eu tenho aquele

dinheiro dos meus bezerros: são onze moedas de ouro menos um

quarto.

- Pois falaremos: pensa tu no modo de ele aceitar sem remorsos.

Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era sinômico

de escrúpulos, ou repugnância.

Foi Mariana levar o caldo a Simão, que lho rejeitou como distraído em

profundo cismar.

- Pois não toma o caldinho? - disse ela com tristeza.

- Não posso, não tenho vontade, menina; será logo. Deixe-me sozinho

algum tempo; vá, vá; não passe o seu tempo ao pé dum doente

aborrecido.

- Não me quer aqui? Irei, e voltarei quando vossa senhoria chamar.

Dissera isto Mariana com os olhos a verterem lágrimas.

Simão notou as lágrimas, e pensou um momento na dedicação da

moça; mas não lhe disse palavra alguma.

E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe

idéias aflitivas que os romancistas raras vezes atribuem aos seus heróis.

Nos romances todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil da falta

de dinheiro. Entendem os novelistas que a matéria é baixa e plebéia. O

estilo vai de má vontade para coisas rasas. Balzac fala muito em

dinheiro; mas dinheiro a milhões. Não conheço, nos cinqüenta livros que

tenho dele, um galã num entre ato da sua tragédia a cismar no modo de

arranjar uma quantia com que um usurário lhe lança, desde a casa do

juiz de paz a todas as esquinas, donde o assaltam o capital e o juro de

oitenta por cento é que os mestres em romances se escapam sempre.

Bem sabem eles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o

herói se encolhe nas proporções destes heroizinhos de botequim, de

quem o leitor dinheiroso foge por instinto, e o outro foge também,

porque não tem que fazer com ele. A coisa é vilmente prosáica, de todo

o meu coração o confesso. Não é bonito deixar a gente vulgarizar-se o

seu herói a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois

que escreveu à mulher estremecida uma carta como aquela de Simão

Botelho. Quem a lesse, diria que o rapaz tinha postadas, em diferentes

estações das estradas do país, carroças e folgadas parelhas de mulas

para transportarem a Paris, a Veneza, ou ao Japão a bela fugitiva! A

estradas, naquele tempo, deviam ser boas para isso, mas não tenho a

certeza de que houvesse estradas para o Japão. Agora creio que há,

porque me dizem que há tudo.

Pois eu já lhes fiz saber, leitores, pela boca de mestre João, que o filho

do corregedor não tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em dinheiro

que ele cismava, quando Mariana lhe trouxe o caldo rejeitado.

A meu ver, deviam atribulá-lo estes pensamentos:

Como pagaria a hospitalidade de João da Cruz?

53

Com que agradeceria os desvelos de Mariana?

Se Teresa fugisse, com que recurso proveria à subsistência de ambos?

Ora, Simão Botelho saíra de Coimbra com a sua mesada, que não era

grande, e quase lha absorvera o aluguel da cavalgadura, e a gorjeta

generosa que dera ao arreeiro, a quem devia o conhecimento do

prestante ferrador.

As relíquias desse dinheiro dera-as ele à portadora da carta naquele dia.

Má situação!

Lembrou-se de escrever à mãe. Que lhe diria ele? Como explicaria a sua

residência naquela casa? Deste modo não iria ele dar indícios da morte

misteriosa dos dois criados de Baltasar Coutinho?

Além de que, sobejamente sabia ele que sua mãe o não amava; e, a

mandar-lhe algum dinheiro em segredo, seria o escassamente

necessário para a jornada até Coimbra. Péssima situação!

Cansado de pensar, favoreceu-o a providência dos infelizes com um

sono profundo,

E Mariana entrara pé ante pé na sala, e, ouvindo-lhe a respiração alta,

aventurou-se a entrar na alcova. Lançou-lhe um lenço de cassa sobre o

rosto, em roda do qual zumbia um enxame de moscas. Viu a carteira

sobre uma banqueta que adornava o quarto, pegou nela, e saiu pé ante

pé. Abriu a carteira, viu papéis, que não soube ler, e num dos

repartimentos duas moedas de seis vintéis. Foi restituir a carteira ao seu

lugar, e tomou de um cabide as calças, colete e jaqueta à espanhola, do

hóspede. Examinou os bolsos e não encontrou um ceitil.

Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia

hora assim, e meditava angustiada a nobre rapariga. Depois ergueu-se

de golpe, conversou longo tempo com o pai. João da Cruz escutou-a,

contrariou-a, mas ia de vencida sempre pelas réplicas da filha, até que,

a final, disse:

- Farei o que dizes, Mariana. Dá-me cá o teu dinheiro, que não vou

agora levantar a pedra da lareira para bulir no caixote dos quatrocentos

mil réis. Tanto faz um como outro: teu é ele todo.

Mariana deu-se pressa em ir à arca, donde tirou uma bolsa de linho com

dinheiro em prata, e alguns cordões, anéis e arrecadas. Guardou o seu

oiro numa boceta, e deu a bolsa ao pai.

João da Cruz aparelhou a égua. e saiu. Mariana foi para a sala do

doente.

Acordou Simão.

- Não sabe!? - exclamou ela com semblante entre alegre e assustado,

perfeitamente contrafeito.

- Que é, Mariana?

- Sua mãezinha sabe que vossa senhoria aqui está.

- Sabe?! Isso é impossível! Quem lho disse?

- Não sei; o que sei é que ela mandou chamar meu pai.

54

- Isso espanta-me!... E não me escreveu?

- Não, senhor!... Agora me lembro que talvez ela soubesse que o senhor

aqui esteve, e cuide que já não está, e por isso lhe não escreveu...

Poderá ser?

- Poderá... Mas quem lho diria!? Se isto se sabe, então podem suspeitar

da morte dos homens.

- Pode ser que não; e ainda que desconfiem, não há testemunhas. O pai

disse que não tinha medo nenhum. O que for soará. Não esteja a cismar

nisso... Vou-lhe buscar o caldinho, sim?

- Vá, se quer, Mariana. O céu deparou-me em si a amizade duma irmã.

Não achou a moça na sua alegre alma palavras em resposta à doçura

que o rosto do mancebo exprimia.

Veio com o "caldinho" - diminuitivo que a retórica duma linguagem

meiga sanciona; mas contra o qual protestava a larga e funda malga

branca, ao lado da travessa com meia galinha loura, de gorda.

- Tanta coisa! - exclamou, sorrindo, Simão.

- Coma o que puder - disse ela corando. - Eu bem sei que os senhores

da cidade não comem em malgas tamanhas, mas eu não tinha outra

mais pequena; e coma sem nojo, que esta malga nunca serviu, que a fui

eu comprar à loja, por pensar que vossa senhoria não quisera ontem

comer por se atrigar da outra.

- Não, Mariana, não seja injusta, eu não tinha, nem tenho vontade.

- Mas coma por eu lhe pedir... Perdoe o meu atrevimento... Faça de

conta que é uma sua irmã que lhe pede. Ainda agora me disse...

- Que o céu me dava em si a amizade duma irmã...

- Pois aí está...

Simão achou tão necessário à sua conservação o sacrifício, como ao

contentamento da carinhosa Mariana. Passou-lhe na mente, sem

sombra de vaidade, a conjetura de que era amado daquela doce

criatura. Entre si dizia que seria uma crueza mostrar-se conhecedor de

tal afeição quando não tinha alma para lha premiar, nem para lhe

mentir. Assim mesmo, bem longe de se afligir, lisonjeavam-no os

desvelos da gentil moça. Ninguém sente em si o peso do amor que se

inspira e não comparte. Nas máximas aflições, nas derradeiras horas do

coração e da vida, é grato ainda sentir-se amado quem já não pode

achar no amor diversão das penas, nem soldar o último fio que se está

partindo. Orgulho ou insaciabilidade do coração humano, seja o que for,

no amor que nos dão nós graduamos o que valemos em nossa

consciência.

Não desprazia, portanto, o amor de Mariana ao amante apaixonado de

Teresa. Isto será culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se

me deixam ter opinião, a culpa de Simão Botelho está na fraca

natureza, que é toda galas no céu, no mar e na terra, e toda

55

incoerências, absurdas e vícios no homem, que se aclamou a si próprio

rei da criação, e nesta boa fé dinástica vai vivendo e morrendo.

IX

Duas horas se detivera João da Cruz fora de casa. Chegou quando a

curiosidade do estudante era já sofrimento.

- Estará seu pai preso?! - disse ele a Mariana.

- Não mo diz o coração, e o meu coração nunca me engana -

respondera ela.

E Simão replicara:

- E que lhe diz o coração a meu respeito, Mariana? Os meus trabalhos

ficarão aqui?

- Vou-lhe dizer a verdade, senhor Simão... mas não digo...

- Diga que lho peço, porque tenho fé no bom anjo que fala em sua

alma. Diga...

- Pois sim... O meu coração diz-me que os seus trabalhos ainda estão

no começo...

Simão ouviu-a atentamente e não respondeu. Assombrou-lhe o ânimo

esta idéia torva, e afrontosa à singela rapariga: - "Pensará ela em me

desviar de Teresa, para se fazer amar?"

Pensava assim quando chegou o ferrador.

- Aqui estou de volta - disse ele com semblante festivo. - Sua mãe

mandou-me chamar...

- Já sei... E como soube ela que eu estava aqui?

- Ela sabia que o fidalgo estivera cá: mas cuidava que vossa senhoria já

tinha ido para Coimbra. Quem lho disse não sei, nem perguntei; porque

a uma pessoa de respeito não se fazem perguntas. Dizia ela que sabia o

fim a que o senhor viera esconder-se aqui. Ralhou alguma coisa; mas

eu, cá como pude, acomodei-a e não há novidade. Perguntou-me o que

estava o menino fazendo aqui depois que a fidalguinha fora para o

convento. Disse-lhe que vossa senhoria estava adoentado de uma queda

que dera do cavalo abaixo. Tornou ela a perguntar-me se o senhor tinha

dinheiro; e eu disse que não sabia. E, vai ela, foi dentro, e voltou dai a

pouco com este embrulho, para eu lhe entregar. Aí o tem tal e qual; não

sei quanto é.

- E não me escreveu?

- Disse que não podia ir à escrivaninha, porque estava lá o senhor

corregedor - respondeu com firmeza mestre João - e também me

recomendou que não lhe escrevesse vossa senhoria senão de Coimbra,

porque, se seu pai soubesse que o menino cá estava, ia tudo raso lá em

casa. Ora ai está.

56

- E não lhe falou nos criados de Baltasar?

- Nem um pio!... Lá na cidade ninguém já falava nisso hoje.

- E que lhe disse da senhora D. Teresa?

- Nada, senão que ela fora para o convento. Agora deixe-me ir amantar

a égua, que está a escorrer em fio. Ó rapariga, traze-me cá a manta.

Enquanto Simão contava onze moedas menos um quartinho,

maravilhando da estranha liberalidade, Mariana, abraçando o pai no

repartimento vizinho da casa, exclamava:

- Arranjou muito bem a mentira!

- Ó rapariga, quem mentiu foste tu! Aquilo lá o arranjaste tu com essa

tua cabecinha! Mas a coisa saiu ao pintar, hein? Ele comeu-a que nem

confeitos! Anda lá, que ficaste sem os bezerros, mas lá virá tempo em

que ele te dê bois a troco de bezerros.

- Eu não fiz isto por interesse, meu pai... - atalhou ela, ressentida.

- Olha o milagre! isso sei eu: mas, como diz lá o ditado; quem semeia,

colhe.

Mariana quedou pensativa, e dizendo entre si: - Ainda bem que ele não

pode pensar de mim o que meu pai pensa. Deus sabe que não tenho

esperanças nenhumas interesseiras no que fiz.

Simão chamou o ferrador, e disse-lhe:

- Meu caro João, se eu não tivesse dinheiro, aceitava sem repugnância

os seus favores, e creio que vossemecê mos faria sem esperança de

ganhar com eles; mas, como recebi esta quantia, há de consentir que

lhe dê parte dela para os meus alimentos. Motivos de gratidão a dividas

que se não pagam. ainda me ficam muitos para nunca me esquecer de

si e da sua boa filha. Tome este dinheiro.

- As contas fazem-se no fim - respondeu o ferrador, retirando a mão - e

ninguém nos há de ouvir, se Deus quiser. Precisando eu de dinheiro, cá

venha. Por ora, ainda está a capoeira cheia de galinhas, e o pão coze-se

todas as semanas.

- Mas aceite - instou Simão - e dê-lhe a aplicação que quiser.

- Em minha casa ninguém dá leis senão eu - replicou mestre João, com

simulado enfadamento. - Guarde lá o seu dinheiro, fidalgo, e não

falemos mais nisso, se quer que o negócio vá direito até ao fim. E victosério!

Nos cinco subseqüentes dias recebeu Simão regularmente cartas de

Teresa, umas resignadas e confortadoras, outras escritas na violência

exasperada da saudade. Em uma dizia:

"Meu pai deve saber que estás aí, e, enquanto aí estiveres, decerto me

não tira do convento. Seria bom que fosses para Coimbra, e

deixássemos esquecer a meu pai os últimos acontecimentos. Senão,

meu querido esposo, nem ele me dá liberdade, nem eu sei como hei de

fugir deste inferno. Não fazes idéia do que é um convento! Se eu

pudesse fazer do meu coração sacrifício a Deus, teria de procurar uma

57

atmosfera menos viciosa que esta. Creio que em toda a parte se pode

orar e ser virtuosa, menos neste convento".

Noutra carta exprimia-se assim:

"Não me desampares, Simão; não vás para Coimbra. Eu receio que meu

pai me queira mudar deste convento para outro mais rigoroso. Uma

freira me disse que eu não ficava aqui; outra positivamente me afirmou

que o pai diligencia a minha ida para um mosteiro do Porto. Sobretudo,

o que me aterra, mas não me dobra, é saber eu que o intento do pai é

fazer-me professar. Por mais que imagine violências e tiranias,

nenhuma vejo capaz de me arrancar os votos. Eu não posso professar

sem ser noviça um ano, e ir a perguntar três vezes; hei de responder

sempre que não. Se eu pudesse fugir daqui!... Ontem fui à cerca, e vi lá

uma porta de carro que dá para o caminho. Soube que algumas vezes

aquela porta se abre para entrarem carros de lenha; mas infelizmente

não se torna a abrir até ao principio do inverno. Se não puder antes,

meu Simão, fugirei nesse tempo".

Tiveram, entretanto, bom e pronto êxito as diligências de Tadeu de

Albuquerque. A prelada de Monchique, religiosa de sumas virtudes,

cuidando que a filha de seu primo muito de sua devoção e amor a Deus

se recolhia ao mosteiro, preparou-lhe casa, e congratulou-se com a

sobrinha de tão piedosa resolução. A carta congratulatória não a

recebeu Teresa, porque viera à mão de seu pai. Continha ela reflexões

tendentes a desvanecê-la do propósito, se algum desgosto passageiro a

impedia à imprudência de procurar um refúgio onde as paixões se

exacerbavam mais.

Tomadas todas as precauções, Tadeu de Albuquerque fez avisar sua

filha de que sua tia de Monchique a queria ter em sua companhia algum

tempo, e que a jornada se faria na madrugada do dia seguinte.

Teresa, quando recebeu a surpreendente nova, já tinha enviado a carta

daquele dia a Simão. Em sua aflitiva perplexidade, resolveu fazer-se

doente, e tão febril estava das comoções, que dispensava o artifício. O

velho não queria transigir com a doença; mas o médico do mosteiro

reagiu contra a desumanidade do pai e da prioresa, interessada na

violência. Quis Teresa nessa noite escrever a Simão; mas a criada da

prelada, obedecendo às suspeitas da ama, não desamparou a cabeceira

do leito da enferma. Era causa a esta espionagem ter dito a escrivã,

numa hora de má digestão daquele certo vinho estomacal, que Teresa

passava as noites em oração mental, e tinha correspondência com um

anjo do céu por intervenção duma mendiga. Algumas religiosas tinham

visto a mendiga no pátio do convento esperando a esmola de Teresa;

mas cuidaram que era aquela pobre uma devoção da menina. As

palavras irônicas da escrivã foram comentadas, e a mendiga recebeu

ordem de sair da portaria. Teresa, num ímpeto de angústia, quando tal

soube, correu a uma janela, e chamou a pobre, que se retirava

58

assustada, e lançou-lhe ao pátio um bilhete com estas palavras: "É

impossível a nossa correspondência. Vou ser tirada daqui para outro

convento. Espera em Coimbra notícias minhas". Isto foi rapidamente ao

conhecimento da prioresa, e, logo, às ordens dela, partiu o hortelão no

encalço da pobre. O hortelão seguiu-a até fora da porta, espancou-a,

tirou-lhe o bilhete, e foi do convento apresentá-lo a Tadeu de

Albuquerque, A mendiga não retrocedeu; caminhou a casa do ferrador,

e contou a Simão o acontecido.

Simão lançou-se fora do leito e chamou João da Cruz. Naquele aperto

queria ouvir uma voz, queria poder chamar amigo a um homem que lhe

estendesse mão capaz de apertar o cabo dum punhal. O ferrador ouviu

a história e deu o seu voto: "esperar até ver". Simão repeliu a

prudencial frieza do confidente, e disse que partia para Viseu

imediatamente.

Mariana estava ali; ouvira a confidência, e achara acertada a opinião de

seu pai. Vedando, porém, a impaciência do hóspede, pediu licença para

falar onde não era chamada, e disse:

- Se o senhor Simão quer, eu vou à cidade e procuro no convento a

Brito, que é uma rapariga minha conhecida, moça duma freira, e doulhe

uma carta sua para entregar à fidalga.

- Isso é possível, Mariana? - exclamou Simão, a ponto de abraçar a

moça.

- Pois então! - disse o ferrador - o que pode fazer-se, faz-se. Vai-te

vestir, rapariga, que eu vou botar o albardão à égua.

Simão sentou-se a escrever. Tão embaralhadas lhe acudiam as idéias,

que não atinava a formar o desígnio mais proveitoso à situação de

ambos. Ao cabo de longa vacilação, disse a Teresa que fugisse, à hora

do dia, quando a porta estivesse aberta ou violentasse a porteira a

abrir-lhe. Dizia-lhe que marcasse ela a hora do dia seguinte em que ele

a devia esperar com cavalgaduras para a fuga. Em recurso extremo,

prometia assaltar com homens armados o mosteiro, ou incendiá-lo para

se abrirem as portas. Este programa era o mais parecido com o espírito

do acadêmico. Em vivo fogo ardia aquela pobre cabeça! Fechada a

carta, começou a passear em torcicolos, como se obedecesse a

desencontrados impulsos. Encravara as unhas na cabeça, e arrancava os

cabelos. Investia como cego contra as paredes, e sentava-se um

momento para erguer-se de mais furioso ímpeto. Maquinalmente

aferrava das pistolas, e sacudia os braços vertiginosos. Abria a carta

para relê-la, e estava a ponto de rasgá-la, cuidando que iria tarde, ou

não lhe chegaria às mãos. Neste conflito de contrários projetos, entrou

Mariana, e muito alucinado devia de estar Simão para lhe não ver as

lágrimas.

O que tu sofrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse

moço é gratidão ao homem que salvou a vida de teu pai, que rara

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virtude a tua! Se o amas, se por lhe dar alívio às dores tu mesma lhe

desempeces o caminho por onde te ele há de fugir para sempre, que

nome darei ao teu heroísmo! Que anjo te fadou o coração para a

santidade desse obscuro martírio?!

- Estou pronta, disse Mariana.

- Aqui tem a carta, minha boa amiga. Faça muito por não vir sem

resposta - disse Simão, dando-lhe com a carta um embrulho de

dinheiro.

- E o dinheiro também é para a senhora? - disse ela.

- Não, é para si, Mariana: compre um anel.

Mariana tomou a carta, e voltou rapidamente as costas para que Simão

não lhe visse o gesto de despeito senão desprezo.

O acadêmico não ousou insistir, vendo-a apressar-se na descida para o

quinteiro, onde o ferrador enfreava a égua.

- Não lhe chegues muito com a vara - disse João da Cruz a Mariana,

que, de um pulo, se assentou no albardão, coberto de uma colcha

escarlate. - Tu vais amarela como cidra, moça! - exclamou ele

reparando na palidez da filha - Tu. que tens?

- Nada; que hei de eu ter?! dê-me cá a vara, meu pai.

A égua partiu a galope, e o ferrador, no meio da estrada, a rever-se na

filha e na égua, dizia em solilóquio, que Simão ouvira:

- Vales tu mais, rapariga, que quantas fidalgas tem Viseu! Pela mais

pintada não dava eu a minha égua; e, se cá viesse o Miramolim de

Marrocas pedir-me a filha, os diabos me levem se eu lha dava! Isto é

que são mulheres, e o mais é uma história!

X

Apeou Mariana defronte do mosteiro, e foi à portaria chamar a sua

amiga Brito.

- Que boa moça! - disse o padre capelão, que estava no raro lateral da

porta, praticando com a prioresa, acerca da salvação das almas, e de

umas coretas de vinho do Pinhão que ele recebera naquele dia, e do

qual já tinha engarrafado um almude para tonizar o estômago da

prelada.

- Que boa moça! - tornou ele, com um olho nela e outro no raro, onde a

ciumosa prioresa se estava remordendo.

- Deixe lá a moça, e diga quando há de ir a servente buscar o vinho.

- Quando quiser, senhora prioresa. Mas repare bem nos olhos, no feitio,

naquele todo da rapariga!...

- Pois repare o senhor padre João - replicou a freira - que eu tenho mais

que fazer.

E retirou-se com o coração mal-ferido, e o queixo superior escorrendo

lágrimas... de simonte,

60

- Donde é vossemecê? - disse brandamente o padre capelão.

- Sou da aldeia - respondeu Mariana.

- Isso vejo eu... Mas de que aldeia é?

- Não me confesso agora.

- Mas não faria mal se se confessasse a mim, menina, que sou padre...

- Bem vejo.

- Que mal gênio tem!...

- É isto que vê.

- Quem procura cá no convento?

- Já disse lá para dentro quem procuro.

- Mariana, és tu?! Anda cá!

A moça fez uma cortesia de cabeça ao padre capelão, e foi ao locutório

donde vinha aquela voz.

- Eu queria falar contigo em particular, Joaquina - disse Mariana.

- Eu vou ver se arranjo uma grade: espera aí..

O padre tinha saído do pátio, e Mariana, enquanto esperava, examinou,

uma a uma, as janelas do mosteiro. Numa das janelas, através das

reixas de ferro, viu ela uma senhora sem hábito.

- Será aquela? - perguntou Mariana ao seu coração, que palpitava - Se

eu fosse amada como ela!...

- Sobe aquelas escadinhas, Mariana, e entra na primeira porta do

corredor, que eu lá vou - disse Joaquina.

Mariana deu alguns passos, olhou novamente para a janela onde vira a

senhora sem hábito, e repetiu ainda:

- Se eu fosse amada como ela!...

Mal entrou na grade, disse à sua amiga:

- Olha lá, Joaquina, quem é uma menina muito branca, alva como leite,

que estava ali agora numa janela?

- Seria alguma noviça, que há duas cá muito lindas.

- Mas ela não tinha vestimenta nenhuma de freira.

- Ah! já sei; é a D. Teresinha de Albuquerque.

- Então não me enganei - disse Mariana, pensativa.

- Pois tu conhece-la?

- Não; mas por amor dela é que eu cá vim falar contigo.

- Então que é?! Que tens tu com a fidalga?

- Eu cá, por mim nada; mas com uma pessoa que lhe quer muito.

- O filho do corregedor?

- Esse mesmo.

- Mas esse está em Coimbra,

- Não sei se está, nem se não. Faz-me tu um favor?

- Se eu puder...

- Podes... Eu queria falar com ela.

- Ó diabo! Isso não sei se poderá ser, porque a trazem as freiras

debaixo de olho, e ela vai-se embora amanhã.

61

- Para onde vai?

- Vai para outro convento, não sei se de Lisboa, se do Porto. Os baús já

estão preparados, e ela está morta por sair. E tu que lhe queres?

- Não to posso dizer, porque não sei... Queria dar-lhe um papel... Faze

com que ela venha cá, que eu dou-te chita para um vestido.

- Como tu estás rica, Mariana!... - atalhou, rindo, Joaquina. - Eu não

quero a tua chita, rapariga. Se eu puder dizer-lhe que venha, sem que

alguém me ouça, digo-lho. E agora é boa maré, porque tocou ao coro...

Deixa-me ir lá...

Joaquina saiu-se bem da difícil comissão. Teresa estava sozinha,

absorvida a cismar, com os olhos fitos no ponto onde vira Mariana.

- A menina faz favor de vir comigo depressinha? - disse-lhe a criada.

Seguiu-a Teresa, e entrou na grade, que Joaquina fechou, dizendo:

- O mais breve que possa bata por dentro para eu lhe abrir a porta. Se

perguntarem por vossa excelência, digo-lhe que a menina está no

mirante.

A voz de Mariana tremia, quando D. Teresa lhe perguntou quem era.

- Sou uma portadora desta carta para vossa excelência.

- É de Simão! - exclamou Teresa.

- Sim, minha senhora.

A reclusa leu convulsiva a carta duas vezes, e disse:

- Eu não posso escrever-lhe, que me roubaram o meu tinteiro, e

ninguém me empresta um. Diga-lhe que vou de madrugada para o

convento de Monchique, do Porto. Que se não aflija, porque eu sou

sempre a mesma. Que não venha cá, porque isso seria inútil, e muito

perigoso. Que vá ver-me ao Porto, que hei de arranjar modo de lhe

falar. Diga-lhe isto, sim?

- Sim, minha senhora.

- Não se esqueça, não? Vir cá, por modo nenhum. É impossível fugir, e

vou muito acompanhada. Vai o primo Baltasar e as minhas primas, e

meu pai e não sei quantos criados de bagagem e das liteiras. Tirar-me

no caminho é uma locura com resultados funestos. Diga-lhe tudo, sim?

Joaquina disse fora da porta:

- Menina, olhe que a prioresa anda lá por dentro a procurá-la.

- Adeus, adeus - disse Teresa, sobressaltada. - Tome lá esta lembrança

como prova de minha gratidão.

E tirou do dedo um anel de ouro, que ofereceu a Mariana.

- Não aceito minha senhora.

- Por que não aceita?

- Porque não fiz algum favor a vossa excelência. A receber alguma paga

há de ser de quem cá me mandou. Fique com Deus, minha senhora, e

oxalá que seja feliz.

Saiu Teresa, e Joaquina entrou na grade.

- Já te vais embora, Mariana?

62

- Vou, que é pressa; um dia virei conversar contigo muito. Adeus,

Joaquina.

- Pois não me contas o que isto é? O amor da fidalga está perto daqui?

Conta, que eu não digo nada, rapariga!...

- Outra vez, outra vez; obrigada, Joaquina?

Mariana, durante a veloz caminhada, foi repetindo o recado da fidalga;

e, se alguma vez se distraia deste exercício de memória, era para

pensar nas feições da amada do seu hóspede, e dizer, como em

segredo, ao seu coração: "Não lhe bastava ser fidalga e rica: é, além de

tudo, linda como nunca vi outra!" E o coração da pobre moça,

avergando ao que a consciência lhe ia dizendo, chorava.

Simão, de uma fresta do postigo do seu quarto, espreitava ao longo do

caminho, ou escutava a estropeada da cavalgadura.

Ao descobrir Mariana, desceu ao quinteiro, desprezando cautelas e

esquecido já do ferimento, cuja crise de perigo piorara naquele dia, que

era o oitavo depois do tiro.

A filha do ferrador deu o recado, e sem alteração de palavra. Simão

escutara-a placidamente até ao ponto em que lhe ela disse que o primo

Baltasar a acompanhava ao Porto.

- O primo Baltasar!... - murmurou ele com um sorriso sinistro - Sempre

este primo Baltasar cavando a sua sepultura e a minha!...

- A sua, fidalgo! - exclamou João da Cruz. - Morra ele, que o levem

trinta milhões de diabos! Mas vossa senhoria há de viver enquanto eu

for João. Deixe-a ir para o Porto, que não tem perigo no convento. De

hora a hora Deus melhora. O senhor doutor vai para Coimbra, está por

lá algum tempo, e às duas por três, quando o velho mal se precatar, a

fidalguinha engrampa-o, e é sua tão certo como esta luz que nos

alumia.

- Eu hei de vê-la antes de partir para Coimbra - disse Simão.

- Olhe que ela recomendou-me muito que não fosse lá - acudiu Mariana.

- Por causa do primo? - tornou o acadêmico ironicamente.

- Acho que sim, e por talvez não servir de nada lá ir vossa senhoria -

respondeu timidamente a moça.

- Lá, se quer, - brandou mestre João - a mulher, vai-se-lhe tirar ao

caminho. Não tem mais que dizer.

- Meu pai, não meta este senhor em maiores trabalhos? - disse Mariana.

- Não tem dúvida menina - atalhou Simão - eu é que não quero meter

ninguém em trabalhos. Com a minha desgraça, por maior que ela seja,

hei de eu lutar sozinho.

João da Cruz, assumiu uma gravidade de que a sua figura raras vezes

se enobrecia, disse:

- Senhor Simão, vossa senhoria não sabe nada do mundo. Não meta

sozinho a cabeça aos trabalhos, que eles, como o outro que diz, quando

pegam de ensarrilhar um homem, não lhe deixam tomar fôlego. Eu sou

63

um rústico; mas, a bem dizer, estou naquela daquele que dizia que o

mal dos seus burrinhos o fizera alveitar. Paixões... que as leve o diabo,

e mais quem com elas engorda. Por causa de uma mulher, ainda que ela

seja filha do rei, não se há de um homem botar a perder. Mulheres há

tantas como a praga, e são como as rãs do charco, que mergulha uma,

e aparecem quatro à tona da água. Um homem rico e fidalgo como

vossa senhoria, onde quer topa uma com um palmo de cara como se

quer e um dote de encher o olho. Deixe-a ir com Deus ou com a breca,

que ela, se tiver de ser sua, não lhe há de vir dar, tanto andar para trás

como para diante: é ditado dos antigos. Olhe que isto não é medo,

fidalgo. Tome sentido, que João da Cruz sabe o que é pôr dois homens

duma feita a olhar o sete-estrelo, mas não sabe o que é medo. Se o

senhor quer sair à estrada e tirar a tal pessoa ao pai, ao primo, e a um

regimento, se for necessário, eu vou montar na égua, e daqui a três

horas estou de volta com quatro homens, que são quatro dragões.

Simão fitara os olhos chamejantes no do ferrador, e Mariana exclamara,

ajuntando as mãos sobre o seio:

- Meu pai, não lhe dê esses conselhos!...

- Cala-te aí, rapariga! - disse mestre João. - Vai tirar o albardão à égua,

amanta-a, e bota-lhe seco. Não és aqui chamada.

- Não vá aflita, senhora - disse Simão à moça, que se retirava,

amargurada. - Eu não aproveito alguns dos conselhos de seu pai. Ouçoo

com boa vontade, porque sei que quer o meu bem; mas hei de fazer o

que a honra e o coração me aconselharem.

Ao anoitecer, Simão, como estivesse sozinho, escreveu uma longa carta,

da qual extratamos os seguintes períodos:

"Considero-te perdida, Teresa. O Sol de amanhã pode ser que eu o não

veja. Tudo, em volta de mim, tem uma cor de morte. Parece que o frio

da minha sepultura me está passando o sangue e os ossos.

Não posso ser o que tu querias que eu fosse. A minha paixão não se

conforma com a desgraça. Eras a minha vida: tinha a certeza de que as

contrariedades me não privavam de ti, Só o receio de perder-te me

mata. O que me resta do passado é a coragem de ir buscar uma morte

digna de mim e de ti. Se tens força para uma agonia lenta, eu não

posso com ela.

Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem vingança é um

inferno. Não hei de dar barata a vida, não. Ficarás sem mim, Teresa;

mas não haverá ai um infame que te persiga depois da minha morte.

Tenho ciúmes de todas as tuas horas. Hás de pensar com muita

saudade no teu esposo do céu, e nunca tirarás de mim os olhos da tua

alma para veres ao pé de ti o miserável que nos matou a realidade de

tantas esperanças formosas.

Tu verás esta carta quando eu já estiver num outro mundo, esperando

as orações das tuas lágrimas. As orações! Admiro-me desta faísca de fé

64

que me alumia nas minhas trevas.!... Tu deras-me com o amor a

religião, Teresa. Ainda creio; não se apaga a luz, que é tua; mas a

providência divina desamparou-me.

Lembra-te de mim. Vive, para explicares ao mundo, com a tua lealdade

a uma sombra, a razão por que me atraíste a um abismo. Escutarás

com glória a voz do mundo, dizendo que eras digna de mim.

A hora em que leres esta carta..."

Não o deixaram continuar as lágrimas, nem depois a presença de

Mariana. Vinha ela pôr a mesa para a ceia, e, quando desdobrava a

toalha, disse em voz abafada, como se a si mesma somente o dissesse:

- É a última vez que ponho a mesa ao senhor Simão em minha casa!

- Por que diz isso, Mariana?

- Por que mo diz o coração.

Desta vez, o acadêmico ponderou supersticiosamente os ditames do

coração da moça, e com o silêncio meditativo deu-lhe a ela a evidência

antecipada do vaticínio.

Quando voltou com a travessa da galinha, vinha chorando a filha de

João da Cruz.

- Chora com pena de mim, Mariana? - disse Simão, enternecido.

- Choro, porque me parece que o não tornarei a ver; ou, se o vir, será

de modo que oxalá que eu morresse antes de o ver.

- Não será, talvez, assim, minha amiga...

- Vossa senhoria não me faz uma coisa que eu lhe peço?

- Veremos o que pede, menina.

- Não saia esta noite, nem amanhã,

- Pede o impossível, Mariana. Hei de sair, porque me mataria se não

saísse.

- Então perdoe a minha ousadia. Deus o tenha da sua mão.

A rapariga foi contar ao pai as intenções do acadêmico. Acudiu logo

mestre João combatendo a idéia da saída, com encarecer os perigos do

ferimento. Depois, como não conseguisse dissuadi-lo, resolveu

acompanhá-lo. Simão agradeceu a companhia, mas rejeitou-a com

decisão. O ferrador não cedia do propósito, e estava já preparando a

clavina, e arraçoando com medida dobrada a égua - para o que desse e

viesse - dizia ele, quando o estudante lhe disse que, melhor avisado,

resolvera não ir a Viseu, e seguir Teresa ao Porto, passados os dias de

convalescença. Facilmente o acreditou João da Cruz; mas Mariana,

submissa sempre ao que o seu coração lhe bacorejava, duvidou da

mudança, e disse ao pai que vigiasse o fidalgo.

As onze horas da noite, ergueu-se o acadêmico, e escutou o movimento

interior da casa: não ouviu o mais ligeiro ruído, a não ser o rangido da

égua na manjedoura. Escorvou de pólvora nova as duas pistolas.

Escreveu um bilhete sobrescritado a João da Cruz, e ajuntou-o à carta

que escrevera a Teresa. Abriu as portas da janela do seu quarto, e

65

passou dali para a varanda de pau, da qual o salto à estrada era sem

risco. Saltou, e tinha dado alguns passos, quando a fresta, lateral à

porta da varanda, se abriu, e a voz de Mariana lhe disse:

- Então adeus, senhor Simão. Eu fico pedindo a Nossa Senhora que vá

na sua companhia.

O acadêmico parou, e ouviu a voz intima que lhe dizia: - "O teu anjo da

guarda fala pela boca daquela mulher, que não tem mais inteligência

que a do coração alumiado pelo seu amor."

- Dê um abraço em seu pai. Mariana - disse-lhe Simão - e adeus... até

logo, ou...

- Até ao juízo final... - atalhou ela.

- O destino há de cumprir-se... Seja o que o céu quiser.

Tinha Simão desaparecido nas trevas, quando Mariana acendeu a

lâmpada do santuário, e ajoelhou orando com o fervor das lágrimas.

Era uma hora, e estava Simão defronte do convento, contemplando uma

a uma as janelas. Em nenhuma vira da clarão de luz; só a do

lampadário do Sacramento se coava baça e pálida na vidraça duma

fresta do templo. Sentou-se nas escaleiras da igreja, e ouviu ali, imóvel

as quatro horas. Das mil visões que lhe relancearam no atribulado

espírito, a que mais a miúdo se repetia era a de Mariana suplicante, com

as mãos postas; mas, ao mesmo tempo, cria ele ouvir os gemidos de

Teresa, torturada pela saudade, pedindo ao céu que a salvasse das

mãos de seus algozes. O vulto de Ta deu de Albuquerque, arrastando a

filha a um convento, não lhe afogueava a sede da vingança; mas cada

vez que lhe acudia à mente a imagem odiosa de Baltasar Coutinho

instintivamente as mãos do acadêmico se asseguravam da posse das

pistolas.

As quatro horas e um quarto, acordou a natureza toda em hinos e

aclamações ao raiar da alva. Os passarinhos trinavam na cerca do

mosteiro melodias interrompidas pelo toque solene das Ave-Marias na

torre. O horizonte passara de escarlate a alvacento. A púrpura da

aurora, como labareda enorme, desfizera-se em partículas de luz, que

ondeavam no declive das montanhas, e se distendiam nas planícies e

nas várzeas, como se o anjo do Senhor, à voz de Deus, viesse

desenrolando aos olhos da criatura as maravilhas do repontar dum dia

festivo.

E nenhuma destas galas do céu e da terra enlevara os olhos do moço

poeta.!

As quatro horas e meia, ouviu Simão o tinido de liteiras, dirigindo-se

àquele ponto. Mudou de local, tomando por uma rua estreita, fronteira

ao convento.

Pararam as liteiras vazias na portaria, e logo depois chegaram três

senhoras vestidas de jornada, que deviam ser as irmãs de Baltasar,

acompanhadas de dois mochilas com as mulas à rédia. As damas foram

66

sentar-se nos bancos de pedra, laterais à portaria. Em seguida abriu-se

a grossa porta, rangendo nos gonzos, e as três senhoras entraram.

Momentos depois, viu Simão chegar à portaria Tadeu de Albuquerque,

encostado ao braço de Baltasar Coutinho. O velho denotava quebranto e

desfalecimento a espaços. O de Castro-d'Aíre, bem composto de figura e

caprichosamente vestido à castelhana, gesticulava com o aprumo de

quem dá as suas irrefutáveis razões, e consola tomando a riso a dor

alheia.

- Nada de lamúrias, meu tio! - dizia ele. - Desgraça seria vê-la casada!

Eu prometo-lhe antes de um ano restituir-lhe curada. Um ano de

convento é um ótimo vomitório do coração. Não há nada como isso para

limpar o sarro do vício em corações de meninas criadas à discrição. Se

meu tio a obrigasse, desde menina, a uma obediência cega, tê-la-ia

agora submissa, e ela não se julgaria autorizada a escolher marido.

- Era uma filha única, Baltasar! - dizia o velho soluçando.

- Pois por isso mesmo - replicou o sobrinho. - Se tivesse outra, ser-lheia

menos sensível a perda, e menos funesta a desobediência. Faria a sua

casa na filha mais querida, embora tivesse de impetrar uma licença

régia para deserdar a primogênita. Assim, agora, não lhe vejo outro

remédio senão empregar o cautério à chaga; com emplastros é que se

não faz nada.

Abriu-se novamente a portaria. e saíram as três senhoras, e após elas

Teresa.

Tadeu enxugou as lágrimas, e deu alguns passos a saudar a filha, que

não ergueu do chão os olhos.

- Teresa... - disse o velho.

- Aqui estou, senhor - respondeu a filha, sem o encarar.

- Ainda é tempo - tornou Albuquerque.

- Tempo de quê?

- Tempo de seres boa filha.

- Não me acusa a consciência de o não ser.

- Ainda mais?!... Queres ir para tua casa, e esquecer o maldito que nos

faz a todos desgraçados?

- Não, meu pai. O meu destino é o convento. Esquecê-lo nem por

morte. Serei filha desobediente, mas mentirosa é que nunca.

Teresa, circunvagando os olhos, viu Baltasar, e estremeceu,

exclamando:

- Nem aqui!

- Fala comigo, prima Teresa? - disse Baltasar, risonho.

- Consigo falo! Nem aqui me deixa a sua odiosa presença?

- Sou um dos criados que minha prima leva em sua companhia. Dois

tinha eu há dias, dignos de acompanharem a minha prima, mas esses

houve aí um assassino que mos matou. A falta deles, sou eu que me

ofereço.

67

- Dispenso-o da delicadeza - atalhou Teresa, com veemência.

- Eu é que me não dispenso de a servir, à falta dos meus dois fiéis

criados, que um celerado me matou.

- Assim devia ser - tornou ela também irônica -porque os cobardes

escondem-se nas costas dos criados, que se deixam matar.

- Ainda se não fizeram as contas finais..., minha querida prima -

redargüiu o morgado.

Este diálogo correu rapidamente, enquanto Tadeu de Albuquerque

cortejava a prioresa e outras religiosas. As quatro senhoras, seguidas de

Baltasar, tinham saído do átrio do convento, e deram de rosto em Simão

Botelho, encostado à esquina da rua fronteira.

Teresa viu-o... adivinhou-o, primeira de todas, e exclamou:

- Simão!

O filho do corregedor não se moveu.

Baltasar, espavorido do encontro, fitando os olhos nele, duvidava ainda.

- É incrível que este infame aqui viesse! - exclamou o de Castro-d'Aire.

Simão deu alguns passos, e disse placidamente:

- In[ame... eu! e por que?

- Infame, e infame assassino! - replicou Baltasar. - Já fora da minha

presença!

- É parvo este homem! - disse o acadêmico. - Eu não discuto com sua

senhoria... Minha senhora - disse ele a Teresa, com a voz comovida e o

semblante alterado unicamente pelos afetos do coração. - Sofra com

resignação, da qual eu lhe estou dando um exemplo. Leve a sua cruz,

sem amaldiçoar a violência, e bem pode ser que a meio caminho do seu

calvário a misericórdia divina lhe redobre as forças.

- Que diz este patife?! - exclamou Tadeu.

- Vem aqui insultá-lo, meu tio! - respondeu Baltasar, - Tem a petulância

de se apresentar a sua filha a confortá-la na sua malvadez! Isto é de

mais! Olhe que eu esmago-o aqui, seu vilão.

- Vilão é o desgraçado que me ameaça, sem ousar avançar para mim

um passo - redargüiu o filho do corregedor.

- Eu não o tenho feito - exclamou enfurecidamente Baltasar - por

entender que me avilto, castigando-o na presença de criados de meu

tio, que tu podes supor meus defensores, canalha!

- Se assim é - tornou Simão, sorrindo - espero nunca me encontrar de

rosto com sua senhoria. Reputo-o tão cobarde, tão sem dignidade, que

o hei de mandar azorragar pelo primeiro mariola das esquinas.

Baltasar Coutinho lançou-se de ímpeto a Simão. Chegou a apertar-lhe a

garganta nas mãos; mas depressa perdeu o vigor dos dedos. Quando as

damas chegaram a interpor-se entre os dois, Baltasar tinha o alto do

crânio aberto por uma bala, que lhe entrara na fronte. Vacilou um

segundo, e caiu desamparado aos pés de Teresa.

68

Tadeu de Albuquerque gritava a altos brados. Os liteireiros e criados

rodearam Simão, que conservava o dedo no gatilho da outra pistola.

Animados uns pelos outros e pelos brados do velho, iam lançar-se ao

homicida, com risco de vida, quando um homem, com um lenço pela

cara, correu da rua fronteira, e se colocou, de bacamarte aperrado, à

beira de Simão. Estacaram os homens.

- Fuja, que a égua está ao cabo da rua - disse o ferrador ao seu

hóspede.

- Não fujo... Salve-se, e depressa - respondeu Simão.

- Fuja, que se ajunta o povo e não tardam aí soldados.

- Já lhe disse que não fujo - replicou o amante de Teresa, com os olhos

postos nela, que caíra desfalecida sobre as escadas da igreja.

- Está perdido! - tornou João da Cruz.

- Já o estava. Vá-se embora, meu amigo, por sua filha lho rogo. Olhe

que pode ser-me útil; fuja...

Abriram-se todas as portas e janelas, quando o ferrador se lançou na

fuga. até cavalgar a égua.

Um dos vizinhos do mosteiro, que, em razão do seu ofício, primeiro saiu

à rua, era o meirinho geral.

- Prendam-no, prendam-no, que é um matador! - exclamava Tadeu de

Albuquerque.

- Qual? - perguntou o meirinho geral.

- Sou eu - respondeu o filho do corregedor.

- Vossa senhoria! - disse o meirínho, espantado; e, aproximando-se,

acrescentou a meia voz: - Venha, que eu deixo-o fugir.

- Eu não fujo - tornou Simão. - Estou preso. Aqui tem a minhas armas.

E entregou as pistolas.

Tadeu de Albuquerque, quando se recobrou do espasmo, fez transportar

a filha a uma das liteiras, e ordenou que dois criados a acompanhassem

ao Porto.

As irmãs de Baltasar seguiram o cadáver de seu irmão para casa do tio.

XI

O corregedor acorda com o grande rebuliço que ia na casa, e perguntou

à esposa, que ele supunha também desperta na câmara imediata, que

bulha era aquela. Como ninguém lhe respondesse, sacudiu

freneticamente a campainha, e ferrou ao mesmo tempo, aterrado pela

hipótese de incêndio na casa. Quando D. Rita acudiu, já ele estava

enfiando os calções às avessas.

- Que estrondo é este? Quem é que grita? - exclamou Domingos

Botelho.

69

- Quem grita mais é o senhor - respondeu D. Rita.

- Sou eu?! Mas quem é que chora?

- São suas filhas.

- E por quê? Diga numa palavra.

- Pois sim, direi: o Simão matou um homem.

- Em Coimbra?... E fazem tanta bulha por isso!

- Não foi em Coimbra, foi em Viseu - tornou D. Ri-ta.

- A senhora manga comigo?! Pois o rapaz está em Coimbra, e mata em

Viseu! Aí está um caso para que as Ordenações do Reino não

providenciaram.

- Parece que brinca, Menezes! Seu filho matou na madrugada de hoje

Baltasar Coutinho, sobrinho de Tadeu de Albuquerque.

Domingos Botelho mudou inteiramente de aspecto.

- Foi preso? - perguntou o corregedor.

- Está em casa do juiz de fora.

- Manda-me chamar o meirinho geral. Sabe como foi e por que foi essa

morte?... Mande-me chamar o meirinho, sem demora.

- Por que se não veste o senhor, e vai a casa do juiz?

- Que vou eu fazer a casa do juiz?

- Saber de seu filho como isto foi.

- Se não sou pai; sou corregedor. Não me incumbe a mim interrogá-lo.

Senhora D. Rita, eu não quero ouvir choradeiras; diga às meninas que

se calem, ou que vão chorar no quintal.

O meirinho, chamado, relatou miudamente o que sabia e disse ter-se

verificado que o amor à filha do Albuquerque fora causa daquele

desastre.

Domingos Botelho, ouvia a história, disse ao meirinho:

- O juiz de fora que cumpra as leis; se ele não for rigoroso, eu o

obrigarei a sê-lo.

Ausente o meirinho, disse D. Rita Preciosa ao marido:

- Que significa esse modo de falar de seu filho?

- Significa que sou corregedor desta comarca, e que não protejo

assassinos por ciúmes, e ciúmes da filha dum homem, que eu detesto.

Eu antes queria ver mil vezes morto Simão que ligado a essa família.

Escrevi-lhe muitas vezes dizendo-lhe que o expulsava de minha casa, se

alguém me desse a certeza de que ele tinha correspondência com tal

mulher. Não há de querer a senhora que eu vá sacrificar a minha

integridade a um filho rebelde, e de mais a mais homicida.

D. Rita, algum tanto por afeto maternal e bastante por espírito de

contradição, contendeu largo espaço; mas desistiu, obrigada pela

insólita pertinácia e cólera do marido. Tão iracundo e áspero em

palavras nunca o ela vira. Quando lhe ele disse: - "Senhora, em coisas

de pouca monta o seu domínio era tolerável; em questões de honra, o

70

seu domínio acabou: deixe-me!" - D. Rita, quando tal ouviu, e reparou

na fisionomia de Domingos Botelho, sentiu-se mulher, e retirou-se.

A ponto foi isto de entrar o juiz de fora na sala de espera. O corregedor

foi recebê-lo, não com o semblante afetuoso de quem vai agradecer a

delicadeza e implorar indulgência, senão que, de carrancudo que ia,

mais parecera ir ele representar o juiz, por vir naquela visita dar a crer

que a balança da justiça na sua mão tremia algumas vezes.

- Começo por dar a vossa senhoria os pêsames da desgraça de seu filho

- disse o juiz de fora.

- Obrigado a vossa senhoria. Sei tudo. Está instaurado o processo?

- Não podia deixar eu de aceitar a querela.

- Se a não aceitasse, obrigá-lo-ia eu ao cumprimento dos seus deveres.

- A situação do senhor Simão Botelho é péssima. Confessa tudo. Diz que

matou o algoz da mulher que ele amava...

- Fez muito bem - interrompeu o corregedor, soltando uma casquinada

seca e rouca.

- Perguntei-lhe se foi em defesa, e fiz-lhe sinal que respondesse

afirmativamente. Respondeu que não; que, a defender-se, o faria com a

ponta da bota, e não com um tiro. Busquei todos os modos honestos de

o levar a dar algumas respostas que denotassem alucinação ou

demência; ele, porém, respondeu e replica com tanta igualdade e

presença de espírito, que é impossível supor que o assassínio não foi

perpetrado muito intencionalmente e de claro juízo. Aqui tem vossa

senhoria uma especialíssima e triste posição. Queria valer-lhe, e não

posso.

- E eu não posso nem quero, senhor doutor juiz de fora. Está na cadeia?

- Ainda não: está em minha casa. Venho saber se vossa senhoria

determina que lhe seja preparada com decência a prisão.

- Eu não determino nada. Faça de conta que o preso Simão não tem

aqui parente algum.

- Mas, senhor doutor corregedor - disse o juiz de fora com tristeza e

compunção - vossa senhoria é pai.

- Sou um magistrado.

- É demasiada a severidade - perdoe-me a reflexão, que é amiga. Lá

está a lei para o castigar; não o castigue vossa senhoria com o seu ódio.

A desgraça quebranta o rancor de estranhos, quanto mais o afetuoso

ressentimento de um pai!

- Eu não odeio, senhor doutor; desconheço esse homem em que me

fala. Cumpra o seus deveres, que lho ordena o corregedor, e o amigo

mais tarde lhe agradecerá a delicadeza.

Saiu o juiz de fora, e foi encontrar Simão na mesma serenidade em que

o deixara.

71

- Venho de falar com seu pai - disse o juiz; encontrei-o mais irado do

que era natural calcular. Penso que por enquanto nada pode esperar da

influência ou patrocínio dele.

- Isto que importa? - respondeu sossegadamente Simão.

- Importa muito, senhor Botelho. Se seu pai quisesse haveria meios de

mais tarde lhe adoçar a sentença.

- Que me importa a mim a sentença? - replicou o filho do corregedor.

- Pelo que vejo, não lhe importa ao senhor ir a uma forca?

- Não, senhor.

- Que diz, senhor Simão! - redargüiu espantado o interrogador.

- Digo que o meu coração é indiferente ao destino da minha cabeça.

- E sabe que seu pai não lhe dá mesmo proteção, a proteção das

primeiras necessidades na cadeia?

- Não sabia; que tem isso? Que importa morrer de fome, ou morrer no

patíbulo?

- Porque não escreve a sua mãe? Peça-lhe que...

- Que hei de eu pedir a minha mãe? - atalhou Simão.

- Peça-lhe que amacie a cólera de seu pai, senão o senhor Botelho não

tem quem o alimente.

- Vossa senhoria está-me julgando um miserável, a quem dá cuidado

saber onde há de almoçar hoje. Penso que não incumbem ao senhor juiz

de fora essas miudezas de estômago.

- De certo não - redargüiu, irritado, o juiz - Faça o que quiser.

E, chamando o meirinho geral, entregou-lhe o réu, dispensando o

aguazil de pedir força para acompanhá-lo.

O carceireiro recebeu respeitosamente o preso, e alojou-o num dos

quartos melhores do cárcere; mas nu e desprovido do mínimo conforto.

Um outro preso emprestou-lhe uma cadeira de pau. Simão sentou-se,

cruzou os braços e meditou.

Pouco depois, um criado de seu pai conduziu-lhe o almoço, dizendo-lhe

que sua mãe lho mandava a ocultas, e entregando-lhe uma carta dela,

cujo conteúdo importa saber. Simão, antes de tocar no almoço, cujo

cabaz estava no pavimento, leu o seguinte:

"Desgraçado, que estás perdido!

Eu não te posso valer, porque teu pai está inexorável: As escondidas

dele é que te mando o almoço, e não sei se poderei mandar-te o jantar!

Que destino o teu! Oxalá que tivesses morrido ao nascer!

Morto me disseram que tinhas nascido; mas o teu fatal destino não quis

largar a vitima (3).

Para que saiste de Coimbra? A que vieste, infeliz? Agora sei que tens

vivido fora de Coimbra há quinze dias, e nunca tiveste uma palavra que

dissesses a tua mãe!. ."

Simão suspendeu a leitura, e disse entre si:

72

- Como se entende isto?! Pois minha mãe não mandou chamar o João

da Cruz! E não foi e]a quem me mandou o dinheiro?

- Olhe que o almoço arrefece, menino! - disse o criado.

Simão continuou a ler, sem ouvir o criado:

"Deves estar sem dinheiro, e eu desgraçadamente não posso hoje

enviar-te um pinto. Teu irmão Manuel, desde que fugiu para Espanha,

absorve-me todas as economias - Veremos, passado algum tempo, o

que posso fazer; mas receio bem que teu pai saia de Viseu, e nos leve

para Vila-Real, para abandonar de todo o teu julgamento à severidade

das leis.

Meu pobre Simão! Onde estarias tu escondido quinze dias?! Hoje mesmo

é que teu pai teve carta dum lente, participando-lhe a tua falta nas

aulas, e saída para o Porto, segundo dizia o arreeiro que te

acompanhou.

Não posso mais. Teu pai já espancou a Ritinha, por ela querer ir à

cadeia.

Conta com o pouco valor da tua pobre mãe e ao pé dum homem

enfurecido como está teu pai" -

Simão Botelho refletiu alguns minutos, e convenceu-se de que o

dinheiro recebido era de João da Cruz. Quando saiu com o espírito desta

meditação, tinha os olhos marejados de lágrimas.

- Não chore, menino - disse o criado. - Os trabalhos são para os

homens, e Deus há de fazer tudo pelo melhor. Almoce, senhor Simão.

- Leva o almoço - disse ele.

- Pois não quer almoçar?!

- Não. Nem voltes aqui. Eu não tenho família. Não quero absolutamente

nada da casa de meus pais. Diz a minha mãe que eu estou sossegado,

bem alojado, e feliz, e orgulhoso da minha sorte. Vai-te embora já.

O criado saiu, e disse ao carcereiro que o seu infeliz amo estava doido.

D. Rita achou provável a suspeita do servo, e viu a evidência da locura

nas palavras do filho.

Quando o carcereiro voltou ao quarto de Simão, entrou acompanhado

de uma rapariga camponesa: era Mariana. A filha de João da Cruz, que

até àquele momento não apertava sequer a mão do hóspede. correu a

ele com os braços abertos e o rosto banhado de lágrimas. O carcereiro

retirou-se, dizendo consigo: - "Esta é bem mais bonita que a fidalga!"

- Não quero ver lágrimas, Mariana - disse Simão. - Aqui, se alguém

deve chorar, sou eu; mas lágrimas dignas de mim, lágrimas de gratidão

aos favores que tenho recebido de si e de seu pai. Acabo de saber que

minha mãe nunca me mandou dinheiro algum. Era de seu pai aquele

dinheiro que recebi.

Mariana escondeu o rosto no avental com que enxugava o pranto.

- Seu pai teve algum perigo? - tornou Simão em voz perceptível dela.

- Não, senhor.

73

- Está em casa?

- Está, e parece furioso. Queria vir aqui, mas eu não o deixei.

- Perseguiu-o alguém?

- Não, senhor.

- Diga-lhe que não se assuste, e vá depressa sossegá-lo.

- Eu não posso ir sem fazer o que ele me disse. Eu vou sair, e volto

daqui a pouco.

- Mande-me comprar uma banca, uma cadeira, e um tinteiro e papel -

disse Simão, dando-lhe dinheiro.

- Há de vir logo tudo; já cá podia estar; mas o pai disse-me que não

comprasse nada sem saber se sua família lhe mandava o necessário.

- Eu não tenho família, Mariana. Tome o dinheiro.

- Não recebo dinheiro, sem licença de meu pai. Para essas compras

trouxe eu demais. E a sua ferida como estará?

- Ainda agora me lembro que tenho uma ferida! - disse Simão, sorrindo.

- Deve estar boa, que não me dói... Soube alguma coisa de D. Teresa?

- Soube que foi para o Porto. Estavam ali a contar que o pai a mandara

meter sem sentidos na liteira, e está muito povo à porta do fidalgo.

- Está bom, Mariana... Não há desgraçado sem amparo. Vá, pense no

seu hóspede, seja o seu anjo de misericórdia.

Saltaram de novo as lágrimas dos olhos da moça; e, por entre soluços,

estas palavras:

- Tenha paciência. Não há de morrer ao desamparo. Faça de conta que

lhe apareceu hoje uma irmã.

E, dizendo, tirou das amplas algibeiras um embrulho de biscoitos e uma

garrafa de licor de canela, que depôs sobre a cadeira.

- Mau almoço é; mas não achei outra coisa pronta - disse ela, e saiu

apressada, como para poupar ao infeliz palavras de gratidão.

XII

O corregedor, nesse mesmo dia, ordenou que se preparassem mulher e

filhas para no dia imediato saírem de Viseu com tudo que pudesse ser

transportado em cavalgaduras.

Vou descrever a singela e dorida reminiscência duma senhora daquela

família, como a tenho em carta recebida há meses:

"Já lá vão cinqüenta e sete anos, e ainda me lembro, como se fossem

ontem passados, os tristes acontecimentos da minha mocidade. Não sei

como é que tenho hoje mais clara a memória das coisas da infância.

Parece-me que há trinta anos me não lembravam com tantas

circunstâncias e pormenores.

Quando a mãe disse a mim e as minhas irmãs que preparássemos os

74

nossos baús, rompemos todas num choro que irritou a ira do pai. As

manas, como mais velhas ou mais afeitas ao castigo, calaram-se logo.

Eu, porém, que só uma vez, e unicamente por causa de Simão, tinha

sido castigada, continuei a chorar, e tive o inocente valor de pedir ao pai

que me deixasse ir ver o mano à cadeia antes de sairmos de Viseu.

Então fui castigada pela segunda vez, e asperamente.

O criado que levou o jantar à cadeia voltou com ele, e contou-nos que

Simão já tinha alguns móveis no seu quarto, e estava jantando com

exterior sossegado. Aquela hora todos os sinos de Viseu estavam

dobrando a finados por alma de Baltasar.

Ao pé dele disse o criado que estava uma formosa rapariga de aldeia e

coberta de lágrimas. Apontando-a ao criado que a observava, disse

Simão: - A minha família é esta.

No dia seguinte, ao romper da manhã, partimos para Vila-Real. A mãe

chorava sempre; o pai, encolerizado por isso, saiu da liteira em que

vinha com ela, fez que eu passasse para o seu lugar, e fez toda a

jornada na minha cavalgadura.

Logo que chegamos a Vila-Real, eram tão freqüentes as desordens em

casa, à conta do Simão, que meu pai abandonou a família, e foi sozinho

para a quinta de Montezelos. A mãe quis também abandonar-nos e ir

para os primos de Lisboa, a fim de solicitar o livramento do mano. Mas o

pai. que fizera uma espantosa mudança de gênio, quando tal soube,

ameaçou minha mãe de a obrigar judicialmente a não sair da casa de

seu marido e filhas.

Escrevia a mãe a Simão, e não recebia resposta. Pensava ela que o filho

não respondia: anos depois, vimos entre os papéis de meu pai todas as

cartas que ela escrevera. Já se vê que o pai as fazia tirar no correio.

Uma senhora de Viseu escreveu à mãe, louvando-a pelo muito amor e

caridade com que ela acudia às necessidades de seu infeliz filho. Esta

carta foi-lhe entregue por um almocreve; quando não, teria o destino

das outras. Espantou-se minha mãe do conceito em que a tinha a sua

amiga, e confessou-lhe que não o tinha socorrido, porque o filho

rejeitara o pouco que ela quisera fazer em seu bem. A isto respondeu a

senhora de Viseu que uma rapariga, filha dum ferrador, estava vivendo

nas vizinhanças da cadeia, e cuidava do preso com abundância e

limpeza, e a todos dizia que ali estava por ordem e à custa da senhora

D. Rita Preciosa. Acrescentava a amiga de minha mãe que algumas

vezes mandara chamar a bela moça, e lhe quisera dar alguns

cozinhados mais esquisitos para Simão, os quais ela rejeitava, dizendo

que o senhor Simão não aceitava nada.

De tempos a tempos recebíamos estas novas, sempre triste, porque, na

ausência de meu pai, conspiraram, como era de esperar, quase todas as

pessoas distintas de Viseu contra o meu desgraçado irmão.

A mãe escrevia aos seus parentes da capital implorando a graça régia

75

para o filho; mas aquelas cartas não saiam do correio, e iam dar todas à

mão de meu pai.

E que fazia este, entretanto, na quinta, sem família, sem glória, nem

recompensa alguma a tantas faltas? Rodeado de jornaleiros, cultivava

aquele grande montado onde ainda hoje, por entre os tojos e urzes, que

voltaram com o abandono, se podem ver relíquias de cepas plantadas

por ele. A mãe escrevia-lhe lastimando o filho; meu pai apenas

respondia que a justiça não era uma brincadeira, e que na antigüidade

os próprios pais condenavam os filhos criminosos.

Teve minha mãe a afoiteza de se lhe apresentar um dia, pedindo licença

para ir a Viseu. Meu inexorável pai negou-lhe, e invectivou-a

furiosamente.

Passados sete meses, soubemos que Simão tinha sido condenado a

morrer na forca, levantada no local onde fizera a morte. Fecharam-se as

janelas por oito dias; vestimos de luto, e minha mãe caiu doente.

Quando isto se soube em Vila-Real, todas as pessoas ilustres da terra

foram a Montezelos, a fim de obrigarem brandamente o pai a empregar

o seu valimento na salvação do filho condenado. De Lisboa vieram

alguns parentes protestar contra a infâmia, que tamanha ignomínia faria

recair sobre a família, Meu pai a todos respondia com estas palavras: -

A forca não foi inventada somente para os que não sabem o nome do

seu avô. A ignominia das famílias são as más ações. A justiça não

infama senão aquele que castiga.

Tínhamos nós um tio-avô, muito velho e venerando, chamado Antônio

da Veiga. Foi este quem fez o milagre, e foi assim: Apresentou-se a meu

pai, e disse-lhe: - Guardou-me Deus a vida até aos oitenta e três anos.

Poderei viver mais dois ou três? Isto nem já é vida; mas foi-o, e

honrada, e sem mancha até agora, e já agora há de assim acabar; meus

olhos não hão de ver a desonra de sua família. Domingos Botelho, ou tu

me prometes aqui de salvar teu filho da forca, ou eu na tua presença

me mato. - E, dizendo isto, apontava ao pescoço uma navalha de barba.

Meu pai teve-lhe mão do braço, e disse que Simão não seria enforcado.

No dia seguinte, foi meu pai para o Porto, onde tinha muitos amigos na

Relação, e de lá para Lisboa. (4)

Em principio de março de 1805, soube minha mãe, com grande prazer,

que Simão fora removido para as cadeias da Relação do Porto, vencendo

os grandes obstáculos que opuseram a essa mudança os queixosos, que

eram Tadeu de Albuquerque e as irmãs do morto.

Depois..."

Suspendemos aqui o extrato da carta para não anteciparmos a narrativa

de sucessos, que importa, em respeito à arte, atar no fio cortado.

Simão Botelho vira imperturbável chegar o dia do julgamento. Sentouse

no banco dos homicidas sem patrono nem testemunhas de defesa. As

perguntas respondeu com o mesmo ânimo frio daquelas respostas ao

76

interrogatório do juízo. Obrigado a explicar a causa do crime, deu-a com

toda a lealdade, sem articular o nome de Teresa Clementina de

Albuquerque. Quando o advogado da acusação proferiu aquele nome,

Simão Botelho ergueu-se de golpe, e exclamou:

- Que vem aqui fazer o nome de uma senhora a este antro de infâmia e

sangue? Que miserável acusador está ai, que não sabe, com a confissão

do réu, provar a necessidade do carrasco sem enlamear a reputação

duma mulher? A minha acusação está feita: eu a fiz. Agora a lei que

fale, e cale-se o vilão que não sabe acusar sem infamar.

O juiz impôs-lhe silêncio. Simão sentou-se, murmurando:

- Miseráveis todos!

Ouviu o réu a sentença de morte natural para sempre na forca,

arvorada no local do delito. E ao mesmo tempo saíram dentre a

multidão uns gritos dilacerantes. Simão voltou a face para as turbas, e

disse:

- Ides ter um belo espetáculo, senhores! A forca é a única festa do

povo! Levai dai essa pobre mulher que chora: essa é a criatura única

para quem o meu suplício não será um passatempo,

Mariana foi transportada em braços à sua casinha, na vizinhança da

cadeia. Os robustos braços que a levam eram os de seu pai, Simão

Botelho, quando, em toda a agilidade e força dos dezoito anos, ia do

tribunal ao cárcere, ouviu algumas vozes que se alteravam deste modo:

- Quanto vai ele a padecer?

- É bem feito! Vai pagar pelos inocentes que o pai mandou enforcar.

- Queria apanhar a morgada à força de balas!

- Não que estes fidalgos cuidam que não é mais senão matar!...

- Matasse ele um pobre. e tu verias como ele estava em casal

- Também é verdade!

- E como ele vai de cara no ar!

- Deixa ir, que não tarda quem lha faça cair ao chão!...

- Dizem que o carrasco já vem pelo caminho.

- Já chegou de noite, e trazia dois cutelos numa coifa.

- Tu viste-o?

- Não; mas disse a minha comadre que lho dissera a vizinha do cunhado

da irmã, que o carrasco está escondido numa enxovia.

- Tu hás de levar os pequenos a ver o padecente?

- Pudera não! Estes exemplos não se devem perder.

- Eu cá de mim já vi enforcar três, que me lembre, todos por

matadores.

- Por isso tu, há dois anos, não atiraste com a vida do Amaro Lampreia

a casa do diabo!...

- Assim foi; mas, se eu o não matasse, matava-me ele.

- Então de que voga o exemplo?!

77

- Eu sei cá de que voga? O frei Anselmo dos franciscanos é que prega

aos país que levem os filhos a verem os enforcados.

- Isso há de ser para o não esfolarem a ele, quando ele nos esfola com

os peditórios.

Tão desassombrado ia o espírito de Simão, que algumas vezes esvoaçou

nos lábios um sorriso, desafiado pela filosofia do povo, à cerca da forca,

Recolhido ao seu quarto. foi intimado para apelar, dentro do prazo legal.

Respondeu que não apelava, que estava contente da sua sorte, e de

boas avanças com a justiça.

Perguntou por Mariana, e o carcereiro lhe disse que a mandava chamar.

Veio João da Cruz, e a chorar se lastimou de perder a filha, porque a via

delirante a falar em forca e a pedir que a matassem primeiro.

Agudíssíma foi então a dor do acadêmico ao compreender, como se

instantaneamente lhe fulgurasse a verdade, que Mariana o amava até o

extremo de morrer. Por momentos se lhe esvaiu do coração a imagem

de Teresa, se é possível assim pensá-lo. Vê-la-ia porventura como um

anjo redimido em serena contemplação do seu criador; e veria Mariana

como o símbolo da tortura, morrer a pedaços, sem instantes de amor

remunerado que lhe dessem a glória do martírio. Uma, morrendo

amada; outra, agonizando, sem ter ouvido a palavra "amor" dos lábios

que escassamente balbuciavam frias palavras de gratidão.

E chorou então aquele homem de ferro. Chorou lágrimas que valiam

bem as amarguras de Mariana.

- Cuide de sua filha, senhor Cruz! - disse Simão com fervente súplica ao

ferrador - Deixe-me a mim, que estou vigoroso e bom. Vá consolar essa

criatura, que nasceu debaixo da minha má estrela. Tire-a de Viseu;

leve-a para sua casa. Salve-a, para que neste mundo fiquem duas irmãs

que me chorem. Os favores que me tem feito, já agora dispensa-os a

brevidade da minha vida. Daqui a dias mandam-me recolher ao

oratório; bom será sua filha ignore.

De volta, João da Cruz achou a filha prostada na pavimento, ferida no

rosto, chorando e rindo, demente em suma. Levou-a amarrada para sua

casa, e deixou a cargo de outra pessoa a sustentação do condenado.

Terribilíssimas foram então as horas solitárias do infeliz. Até àquele dia,

Mariana, benquista do carcereiro e protegida pela amiga de D. Rita

Preciosa, tinha franca entrada no cárcere a toda a hora do dia, e raras

horas deixava sozinho o preso. Costurava enquanto ele escrevia, ou

cuidava do amanho e limpeza do quarto. Se Simão estava no leito

doente ou prostrado, Mariana, que tivera alguns princípios de escrita,

sentava-se à banca, e escrevia cem vezes o nome de Simão, que muitas

vezes as lágrimas deliam. E isto assim, durante sete meses, sem nunca

ouvir nem proferir a palavra amor. Isto assim, depois das vigílias

noturnas, ora em preces, ora em trabalho, ora no caminho de sua casa,

onde ia visitar o pai a desoras.

78

Nunca mais o preso, na perspectiva da forca, viu entrar aquela doce

criatura o limiar da ferrada porta, que lhe graduava o ar, medido e

calculado para que as inteiras horas da asfixia as gozasse o cordel do

patíbulo. Nunca mais!

E, quando ele evocava a imagem de Teresa, um capricho dos olhos

quebrantados lhe afigurava a visão de Mariana ao par da outra. E

lacrimosas via as duas. Saltava então do leito, fincava os dedos nos

espessos ferros da janela, e pensava em partir o crânio contra as

grades.

Não o sustinha a esperança na terra, nem no céu. Raio de luz divina

jamais penetrou no seu ergástulo. O anjo da piedade encarnada naquela

criatura celestial que enlouquecera, ou voltara para o céu com o espírito

dela. O que o salvara do suicídio não era, pois, esperanças em Deus,

nem nos homens; era este pensamento: "Afinal, cobarde! Que bravura é

morrer quando não há esperança da vida?! A forca é um triunfo quando

se encontra ao cabo do caminho da honra

XIII

- E Teresa?

Perguntam a tempo, minha senhoras, e não me hei de queixar se me

argüírem de a ter esquecido e sacrificado a incidentes de menosporte.

Esquecido, não. Muito há que me reluz e voeja, alada como o ideal

querubim dos santos, nesta minha quase escuridade (5), aquela ave do

céu, como a pedir-me que lhe cubra de flores o restilho de sangue que

ela deixou na terra. Mais lágrimas que sangue deixaste, ó filha da

amargura! Flores são tuas lágrimas, e do céu me diz se os perfumes

delas não valem mais aos pés do teu Deus que as preces de muita

devota que morre santificada pelo mundo, e cujo cheiro de santidade

não passa do olfato hipócrita ou estúpido dos mortais.

Teresa Clementina bem a viam transportada da escadaria do templo

onde caíra, à liteira que a conduziu ao Porto. Recobrando o alento, viu

defronte de si uma criada, que lhe dizia banais e frias expressões de

alívio. Se alguma criada de seu pai lhe era amiga, decerto não aquela,

acintemente escolhida pelo velho. Nem ao menos a confiança para tal

expansão em gritos restava à afligida menina! Mas um raio de piedade

ferira o peito da mulher até àquela hora desafeta a sua ama.

Perguntava-se a si mesma Teresa se aquela horrorosa situação seria um

sonho! Sentia-se de novo falecer de forças, e voltava à vida, sacudida

pela consciência da sua desgraça. Condoeu-se a criada, e incitou-a a

respirar, chorando com ela, e dizendo-lhe:

- Pode falar, menina, que ninguém nos segue.

- Ninguém?!

79

- As suas primas ficaram: apenas vêm os dois lacaios.

- E meu pai não?

- Não, fidalga... Pode chorar e falar à sua vontade.

- E eu vou para o Porto?

- Vamos, sim minha senhora.

- E tu viste tudo como foi, Constança?

- Desgraçadamente vi...

- Como foi? Conta-me tudo.

- A menina bem sabe que seu primo morreu.

- Morreu?! Vi-o cair quase nos meus pés; mas...

- Morreu logo, e depois quiseram os criados, à voz de seu pai, prender o

senhor Simão; mas ele com outra pistola...

- E fugiu? - atalhou Teresa, com veemente alegria.

- Afinal foi ele que se deu à prisão.

- Está preso?!

E, sufocada pelos soluços, com o rosto no lenço, não ouvia as palavras

confortadoras de Constança.

Serenado algum tanto o violento acesso de gemidos e choro, Teresa

sugeriu à criada o louco plano de a deixar fugir da primeira estalagem

onde pousassem para ela ir a Viseu dar o último adeus a Simão.

A criada a custo a despersuadiu do intento, pintando-lhe os novos

perigos que ia acumular à desgraça do seu amante, e animando-a com

a esperança de livrar-se Simão do crime, com a influência do pai, apesar

da perseguição do fidalgo.

Calaram lentamente estas razões no espírito de Teresa. Chorosa,

ansiada e a reveses desfalecida, foi Teresa vencendo a distância que a

separava de Monchique, onde chegou ao quinto dia de jornada.

A prelada já estava sabedora dos sucessos, por emissários que se

adiantaram ao moroso caminhar da liteira.

Foi Teresa recebida com brandura por sua tia, posto que as

recomendações de Tadeu de Albuquerque eram clausura rigorosa e

absoluta privação de meios de escrever a quem quer que fosse.

Ouviu a prelada da boca de sua sobrinha a fiel história dos

acontecimentos, e viu uma a uma as cartas de Simão Botelho.

Choraram abraçadas; mas a prelada, enxugadas as lágrimas de mulher

ao fogo da austeridade religiosa, falou e aconselhou como freira, e freira

que ciliciava o corpo com as rosetas, e o coração com as privações

tormentosas de quarenta anos.

Teresa carecia de forças para a rebelião. Deixou a sua tia a santa

vaidade de exorcismar o demônio das paixões, e deu um sorriso ao anjo

da morte, que, de permeio ao seu amor e à esperança, lhe interpunha a

asa negra que tão de luz refulgente rebrilha às vezes em corações

infelizes.

Quis Teresa escrever.

80

- A quem, minha filha? - perguntou a prelada.

Teresa não respondeu.

- Escrever-lhe para quê? - tornou a religiosa. - Cuidas tu, menina, que

as tuas cartas lhe chegam à mão? Que vais tu fazer senão redobrar a ira

de teu pai contra ti e contra o infeliz preso?! Se o amas, como creio,

apesar de tudo, cuida em salvá-lo. Se não ouves a minha razão, finge-te

esquecida. Se podes violentar a tua dor, dissimula, faze muito porque o

teu pai chegue a noticia de que lhe serás dócil em tudo, se ele tiver

piedade do teu pobre amigo.

Não recalcitrou Teresa. Deu outro sorriso ao anjo da morte, e pediu-lhe

que a envolvesse a ela, e ao seu amor, e à sua esperança, de todo, na

negrura de suas asas.

De mês a mês recebia a abadessa de Monchique uma carta de seu

primo. Eram estas cartas um respiradouro de vingança. Em todas dizia o

velho que o assassino iria ao patíbulo irremediavelmente. A sobrinha

não via as cartas; mas reparava nas lágrimas da compassiva freira.

A débil compleição de Teresa deperecia aceleradamente. A ciência

condenou-a a morte breve. Disto foi informado Tadeu de Albuquerque, e

respondeu: - "Que a não desejava morta; mas, se Deus a levasse,

morreria mais tranqüilo, e com a sua honra sem mancha", Era assim

imaculada a honra do fidalgo de Viseu!... A HONRA, que dizem proceder

em linha reta da virtude de Sócrates, da virtude de Jesus Cristo, da

virtude de milhões de mártires, que se deram às garras das feras,

quando predicavam a caridade e o perdão aos homens!

Quantas carícias inventou a simpatia e a piedade, todas, por ministério

das religiosas exemplares de Monchique, aporfiaram em refrigerar o

ardor que consumia rapidamente a reclusa. Inútil tudo. Teresa

reconhecia com lágrimas a compaixão, e, ao mesmo tempo, alegrava-se

tirando das carícias a certeza de que os médicos a julgavam incurável,

Alguma freira inadvertida lhe disse um dia que uma sua amiga do

convento dos Remédios de Lamengo lhe dissera que Simão tinha sido

condenado à morte.

- E eu vivo ainda!

Depois orou, e chorou; mas os costumes da sua vida em paroxismos

continuaram inalteráveis.

Perguntou à senhora que lhe dera a noticia se a sua amiga do convento

dos Remédios lhe faria a esmola de fazer chegar às mãos de Simão uma

carta. Prontificou-se a freira, depois que ouviu o parecer da prelada.

Entendeu esta religiosa que O derradeiro colóquio entre dois moribundos

não podia danificá-los na vida temporal, nem na vida eterna.

Esta é a carta que leu Simão, quinze dias depois do seu julgamento:

"Simão, meu esposo. Sei tudo... Está conosco a morte. Olha que te

escrevo sem lágrimas. A minha agonia começou há sete meses. Deus é

bom, que me poupou ao crime. Ouvi a notícia da tua próxima morte, e

81

então compreendi porque estou morrendo hora a hora. Aqui está o

nosso fim, Simão!... Olha as nossas esperanças! Quando tu me dizias os

teus sonhos de felicidade, e eu te dizia os meus!... Que mal fariam a

Deus os nossos inocentes desejos?!... Porque não merecemos nós o que

tanta gente tem?... Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crê-lo! A

eternidade apresenta-me tenebrosa, porque a esperança era a luz que

me guiava de ti para a fé. Mas não pode findar assim o nosso destino.

Vê se podes segurar o último fio da tua vida a uma esperança qualquer.

Ver-nos-emos num outro mundo, Simão? Terei eu merecido a Deus

contemplar-te? Eu rezo, suplico, mas desfaleço na fé quando me

lembram as últimas agonias do teu martírio. As minhas são suaves;

quase que as não sinto. Não deve custar a morte a quem tiver o coração

tranqüilo. O pior é a saudade, saudade daquelas esperanças que tu

achavas no meu coração, adivinhando as tuas. Não importa, se nada há

além desta vida. Ao menos, morrer. Se tu pudesses viver agora, de que

te serviria? Eu também estou condenada, e sem remédio. Segue-me,

Simão! Não tenhas saudades da vida, não tenhas, ainda que a razão te

diga que podias ser feliz, se me não tivesses encontrado no caminho por

onde te levei à morte... E que morte, meu Deus!... Aceita-a! Não te

arrependas. Se houver crime, a justiça de Deus te perdoará pelas

angústias que tens de sofrer no cárcere... e nos últimos dias, e na

presença da..."

Teresa ia escrever uma palavra, quando a pena lhe caiu da mão, e uma

convulsão lhe vibrou todo o corpo por largo espaço. Não escreveu a

palavra! Mas a idéia da força parou-lhe a vida. A freira entrou na cela a

pedir-lhe a carta, porque o correio ia a partir. Teresa, indicando-lhe,

disse:

- Leia, se quiser, e feche-a, por caridade, que eu não posso.

Nos três dias seguintes Teresa não saiu do leito. A cada hora as

religiosas assistentes esperavam que ela fechasse os olhos.

- Custa muito morrer! - dizia algumas vezes a enferma.

Não faltavam piedosos discursos a divertirem-lhe o espírito do mundo,

Teresa ouvia-os, e dizia com ânsia:

- Mas a esperança do céu, sem ele!... Que é o céu, meu Deus?

E o apostólico capelão do mosteiro não sabia dizer se os bens do céu

tinham comum com os do mundo as delícias que falsamente na terra se

chamam assim. Aquelas sutilezas espirituais que vêm com algumas

espécies de física, assim à maneira dos últimos lampejos da vital flama,

tinha-as a enferma, quando acontecia falarem-lhe as religiosas na bemaventurança.

Às vezes, se o capelão, convidado pela lucidez de Teresa,

entrava os domínios da filosofia, tratando como tema a imortalidade da

alma, a inculta senhora argumentava em breves termos, com razões tão

claras a favor da união eterna das almas, já deste mundo esposas, que

82

o padre ficava em dúvidas se seria herético contestar uma cláusula não

inscrita em algum dos quatro evangelhos.

Maravilhava-se já a medicina da pertinácia daquela vida. Tinha a

abadessa escrito a seu primo Tadeu, apressando-o a ir ver o anjo ao

despedir-se da terra. O velho, tocado de piedade e por ventura de amor

paternal, deliberou tirar do convento a filha, na esperança de salvá-la

ainda, Uma forte razão acrescia àquela: era a mudança do condenado

para os cárceres do Porto. Deu-se pressa, pois, o fidalgo, e chegou ao

Porto a tempo que a religiosa, amiga da outra de Lamego, entregava à

doente esta carta de Simão:

"Não me fujas ainda, Teresa. Já não vejo a forca, nem a morte. Meu pai

protege-me, e a salvação é possível. Prende ao coração os últimos fios

da tua vida. Prolonga a tua agonia, enquanto te eu disser que espero.

Amanhã vou para as cadeias do Porto, e hei de ali esperar a absolvição

ou comutação da sentença. A vida é tudo. Posso amar-te no degredo.

Em toda a parte há céu, e flores, e Deus. Se viveres, um dia serás livre;

a pedra do sepulcro é que nunca se levanta, Vive, Teresa, vive! Há dias,

lembrava-me que as tuas lágrimas lavariam da minha face as nódoas do

sangue do enforcado. Esse pesadelo atroz passou. Agora neste inferno

respira-se; o esparto do carrasco já me não aperta em sonhos a

garganta. Já fito os olhos no céu, e reconheço a providência dos

infelizes. Ontem, vi as nossas estrelas, aquelas dos nossos segredos nas

noites da ausência. Volvi à vida, e tenho o coração cheio de esperanças.

Não morras, filha da minha alma!"

Ia alta a noite, quando Teresa, sentada no seu leito, leu esta carta.

Chamou a criada, para ajudá-la a vestir, Mandou abrir a janela do seu

quarto, e encostou as faces às reixas de ferro. Esta janela olhava para o

mar, e o mar era nessa noite uma imensa flama de prata; e a Lua,

esplendidíssima, eclipsava o fulgor dumas estrelas que Teresa procurava

no céu.

- São aquelas! - exclamou ela.

- Aquelas que, minha senhora? - disse Constança.

- As minhas estrelas!... pálidas como eu... A vida! ai! a vida! - clamou

ela, erguendo-se, e passando pela fronte as mãos cadavéricas - Quero

viver! Deixai-me viver, ó Senhor!

- Há de viver, menina! Há de viver, que Deus é piedoso! - disse a criada

- mas não tome o ar da noite. Este nevoeiro do rio faz-lhe grande mal.

- Deixa-me, deixa-me, que tudo isto é viver... Não vejo o céu há tanto

tempo! Sinto-me ressuscitar aqui, Constança! Por que não tenho eu

respirado todas as noites este ar? Eu poderia viver alguns anos?

Poderei, minha Constança? Pede tu, pede muito à minha Virgem

Santíssima! Vamos orar ambas! Vamos, que o Simão não morre... O

meu Simão vive, e quer que eu viva. Está no Porto amanhã, e talvez já

esteja...

83

- Quem, minha senhora?!

- Simão; o Simão vem para o Porto.

A criada julgou que a sua ama delirava, mas não a contrariou.

- Teve carta dele a fidalga? - tornou ela, cuidando que assim lhe

alimentava aquele instante de febril contentamento.

- Tive... Queres ouvir?... Eu leio...

E leu a carta, com grande pasmo de Constança, que se convenceu.

- Agora vamos rezar, sim?... Tu não és inimiga dele, não? Olha,

Constança, se eu casar com ele, tu vais para a nossa companhia. Verás

como és feliz, Queres ir, não queres?

- Sim, minha senhora, vou. Mas ele conseguirá livrar-se da morte?

- Livra; tu verás que livra; o pai dele há de livrá-lo... e a Virgem

Santíssima é que nos há de unir. Mas, se eu morro... se eu morro, meu

Deus!

E, com as mãos convulsivamente enlaçadas sobre o seio, Teresa

arquejava em pranto.

- Se eu não tenho já forças!... Todos dizem que eu morro, e o médico já

nem me receita!... Então melhor me fora ter acabado antes desta hora!

Morrer com esperanças, ó Mãe de Deus!

E ajoelhou ante o retábulo devoto que trouxera do seu quarto de Viseu,

ao qual sua mãe e avó já tinham orado, e em cujo rosto compassivo os

olhos das duas senhoras moribundas tinham apagado os seus últimos

raios de luz.

XIV

Anunciara-se Tadeu de Albuquerque na portaria de Monchique, ao dia

seguinte dos anteriores sucessos.

Sua prima, primeira senhora que lhe saiu ao locutório, vinha enxugando

as lágrimas de alegria.

- Não cuide que eu choro de aflita, meu primo - disse ela. - O nosso

anjo, se Deus quiser, pode salvar-se. Logo de manhã a vi passear por

seu pé nos dormitórios. Que diferença de semblante ela tem hoje! Isto,

meu primo, é milagre de duas santas que temos inteiras na claustura, e

com as quais algumas perfeitas criaturas desta casa se apegaram. Se as

melhoras continuarem assim, temos a Teresa; o céu consente que

esteja entre nós aquele anjo mais alguns anos...

- Muito folgo com o que me diz, minha boa prima - atalhou o fidalgo. - A

minha resolução é levá-la já para Viseu, e lá se restabelecerá com os

ares pátrios, que são muito mais sadios que os do Porto.

- É ainda cedo para tão longa e custosa jornada, meu primo. Não vá o

senhor cuidar que ela está capaz de se meter ao caminho. Lembre-se

84

que ainda ontem pensamos em encontrá-la hoje morta. Deixe-a estar

mais alguns meses; e depois não digo que não leve; mas, por enquanto,

não consinto semelhante imprudência.

- Maior imprudência - replicou o velho - é conservá-la no Porto, onde, as

estas horas, deve estar o malvado matador de meu sobrinho. Talvez

não saiba a prima?... Pois é verdade: o patife do corregedor saiu a

campo em defesa dele, e conseguiu que o tribunal da Relação lhe

aceitasse a apelação da sentença, passado o prazo da lei; e, não

contente com isto, fez que o filho fosse removido para as cadeias do

Porto. Eu agora trabalho para que a sentença seja confirmada, e espero

consegui-lo; mas, enquanto o assassino aqui estiver, não quero que

minha filha esteja no Porto.

- O primo é pai, e eu sou apenas uma parenta - disse a abadessa -

cumpra-se a sua vontade. Quer ver a menina, não é assim?

- Quero, se é possível.

- Pois bem, enquanto eu vou chamá-la, queira entrar na primeira grade

à sua mão direita, que Teresa lá vai ter.

Avisada Teresa de que seu pai a esperava, instantaneamente a cor sadia

que alegrava as senhoras religiosas se demudou na lividez costumada.

Quis a tia, vendo-a assim, que ela não saísse do seu quarto, e

encarregava-se de espaçar a visita do pai.

- Tem de ser - disse Teresa. - Eu vou, minha tia.

O pai, ao vê-la, estremeceu e enfiou. Esperava mudança, mas não

tamanha. Pensou que a não conheceria sem o prevenirem de que ia ver

sua filha.

- Como eu te encontro, Teresa! - exclamou ele, comovido. - Por que me

não disseste há mais tempo o teu estado?

Teresa sorriu-se, e disse:

- Eu não estou tão mal como as minhas amigas imaginam.

- Terás tu forças para ir comigo para Viseu?

- Não, meu pai; não tenho mesmo forças para lhe dizer em poucas

palavras que não torno ao Viseu.

- Porque não, se a tua saúde depender disso?!...

- A minha saúde depende do contrário. Aqui viverei ou morrerei.

- Não é tanto assim, Teresa - replicou Tadeu com dissimulada brandura.

- se eu entender que estes ares são nocivos à tua saúde, hás de ir,

porque é obrigação minha conduzir e corrigir a tua má sina.

- Está corrigida, meu pai. A morte emenda todos os erros da vida.

- Bem sei; mas eu quero-te viva, e, portanto, recobra forças para o

caminho, Logo que tiveres meio dia de jornada, verás como a saúde

volta como por milagre.

- Não vou, meu pai.

- Não vais?! - exclamou, irritado, o velho, lançando às grades as mãos

trementes de ira.

85

- Separam-nos esses ferros a que meu pai se encosta, e para sempre

nos separam.

- E as leis? Cuidas tu que eu não tenho direitos legítimos para te obrigar

a sair do convento? Não sabes que tens apenas dezoito anos?

- Sei que tenho dezoito anos; as leis não sei quais são, nem me

incomoda a minha ignorância. Se pode ser que mão violenta venha

arrancar-me daqui, convença-se, meu pai, de que essa mão há de

encontrar um cadáver. Depois... o que quiserem de mim. Enquanto,

porém, eu puder dizer que não vou, juro-lhe que não vou, meu pai.

- Sei o que é! - bramiu o velho. - já sabes que o assassino está no

Porto?

- Sei, sim, senhor.

- Ainda o dizes sem vergonha, nem horror de ti mesma! Ainda...

- Meu pai - interrompeu Teresa - não posso continuar a ouvi-lo, porque

me sinto mal. Dê-me licença... e vingue-se como puder. A minha glória

neste longo martírio seria uma forca levantada ao lado da do assassino.

Teresa saiu da grade, deu alguns passos na direção da sua cela, e

encostou-se esvaída à parede. Correram a ampará-la sua tia e a criada,

mas ela, afastando-as suavemente de si, murmurou:

- Não é preciso... Estou boa... Esses golpes dão vida, minha tia.

E caminhou sozinha a passos vacilantes.

Tadeu batia à porta do mosteiro com irrisório enfurecimento pancadas,

umas após outras, com grande medo da porteira e outras madres,

espantadas do insólito despropósito.

- Que é isso, primo? - disse a prelada, com severidade.

- Quero cá fora Teresa.

- Como fora? Quem há de lançá-la fora?!

- A senhora, que não pode aqui reter uma filha contra a vontade de seu

pai.

- Isso assim é; mas tenha prudência, primo.

- Não há prudência nem meia prudência. Quero minha filha cá fora.

- Pois ela não quer ir?

- Não, senhora.

- Então espere que por bons modos a convençamos a sair, porque não

havemos trazer-lhe a rastos.

- Eu vou buscá-la, sendo preciso - redargüiu em crescente fúria. -

Abram-me estas portas, que eu a trarei!

- Estas portas não se abrem assim, meu primo, sem licença superior. A

regra do mosteiro não pode ser quebrantada para servir uma paixão

desordenada, Tranqüilize-se, senhor! Vá descansar desse frenesi, e

venha noutra hora combinar comigo o que for digno de todos nós.

- Tenho entendido! - exclamou o velho, gesticulando contra o ralo do

locutório. - Conspiram todas contra mim! Ora descansem, que eu lhes

86

darei uma boa lição, Fique a senhora abadessa sabendo que eu não

quero que minha filha receba mais cartas do matador, percebeu?

- Eu creio que Teresa nunca recebeu cartas de matadores, nem suponho

que as receba d'ora em diante.

- Nâo sei se sabe, nem se não. Eu vigiarei o convento. A criada, que

está com ela, ponham-na fora, percebeu?

- Por quê? - redargüiu a prelada com enfado.

- Porque a encarreguei de me avisar de tudo, e ela nada me tem

contado.

- Se não tinha que lhe dizer, senhor!

- Não me conte histórias, prima! A criada quero vê-la sair do convento e

já!

- Eu não lhe posso fazer a vontade, porque não faço injustiças. Se vossa

senhoria quiser que a sua filha tenha outra criada, mande-lhe: mas a

que ela tem, logo que deixe de a servir, há muitas senhoras nesta casa

que a desejam, e ela mesma deseja aqui ficar.

- Tenho entendido - bradou ele - querem-me matar! Pois não matam;

primeiro há de o diabo dar um estouro!

Tadeu de Albuquerque saiu em corcovos do átrio do mosteiro. Era

hedionda aquela raiva que lhe contraia as faces encorreadas, revendo

suor e sangue aos olhos acovados.

Apresentou-se ao intendente da polícia, pedindo providências para que

se lhe entregasse sua filha. O intendente respondeu que ele não

solicitava competentemente tais providências. Instou para que o

carcereiro da cadeia não deixasse sair alguma carta de um assassino

vindo da comarca de Viseu, por nome Simão Botelho. O intendente disse

que não podia, sem motivos concernentes a devassas, obstar a que o

preso escrevesse a quem quer que fosse.

Reduplicada a fúria, foi dali ao corregedor do Porto, com os mesmos

requerimentos, em tom arrogante. O corregedor, particular amigo de

Domingos Botelho, despediu com enfado o importuno, dizendo-lhe que a

velhice sem juízo era coisa tão de riso como de lástima. Esteve então a

pique de perder-se a cabeça de Tadeu de Albuquerque. Andava e

desandava as ruas do Porto, sem atinar com uma saída digna da sua

prosápia e vingança. No dia seguinte, bateu à porta de alguns

desembargadores, e achava-os mais inclinados à demência que à justiça

a respeito de Simão Botelho. Um deles, amigo de infância de D. Rita

Preciosa, e implorado por ela, falou assim ao sanhudo fidalgo:

- Em pouco está o ser homicida, senhor Albuquerque. Quantas mortes

teria vossa senhoria hoje feito se alguns adversários se opusessem à

sua cólera? Esse infeliz moço, contra quem o senhor solicita desvairadas

violências, conserva a honra na altura da sua imensa desgraça.

Abandonou-o o pai, deixando-o condenar à forca; e ele da sua extrema

degradação nunca fez sair um grito suplicante de misericórdia, Um

87

estranho lhe esmolou a subsistência de oito meses de cárcere, e ele

aceitou a esmola, que era honra para si e para quem lha dava. Hoje, fui

eu ver esse desgraçado filho de uma senhora que eu conheci no paço,

sentada ao lado dos reis. Achei-o vestido de baetão e pano pedrês.

Perguntei-lhe se assim estava desprovido de fato. Respondeu-me que se

vestira à proporção dos seus meios, e que devia à caridade dum

ferrador aquelas calças e jaqueta. Repliquei-lhe eu que escrevesse a seu

pai para o vestir decentemente. Disse-me que não pedia nada a quem

consentiu que os delitos do seu coração e da sua dignidade e do

pundonor do seu nome fossem expiados num patíbulo. Há grandeza

neste homem de dezoito anos, senhor Albuquerque. Se vossa senhoria

tivesse consentido que sua filha amasse Simão Botelho Castelo-Branco,

teria poupado a vida ao homem sem honra que se lhe atravessou com

insultos e ofensas corporais de tal afronta, que desonrado ficaria Simão

se as não repelisse como homem de alma e brios. Se vossa senhoria se

não tivesse oposto às honestíssimas e inocentes afeições de sua filha, a

justiça não teria mandado arvorar uma forca, nem a vida de seu

sobrinho teria sido imolada aos seus caprichos de mau pai. E, se sua

filha casasse com o filho do corregedor de Viseu, pensa acaso vossa

senhoria que os seus brasões sofriam desdouro? Não sei de que século

data a nobreza do senhor Tadeu de Albuquerque, mas do brasão de D.

Rita Teresa Margarida Preciosa Caldeirão Castelo-Branco posso dar-lhe

informações sobre as páginas das mais verídicas e ilustres genealogias

do reino. Par parte de seu pai, Simão Botelho tem do melhor sangue de

Trás-os-Montes, e não se temerá de entrar em competências com o dos

Albuquerques de Viseu, que não é de certo o dos Albuquerques terríveis

de que reza Luís de Camões...

Ofendido até ao âmago pela derradeira ironia, Tadeu ergueu-se de

ímpeto, tomou o chapéu e a enorme bengala de castão de ouro e fez a

cortesia de despedida.

- São amargas as verdades, não é assim? - disse-lhe, sorrindo, o

desembargador Mourão Mosqueira,

- Vossa excelência lá sabe o que diz, e eu cá sei no que hei de ficar -

respondeu com tom irônico o fidalgo, alanceado na sua honra e na dos

seus quinze avós.

O desembargador retorquiu:

- Fique no que quiser; mas vá na certeza, se isso lhe serve de alguma

coisa, que Simão Botelho não vai à forca.

- Veremos... - resmoneou o velho.

São treze dias decorridos do mês de Março de 1805.

Está Simão num quarto de malta das cadeias da Relação. Um catre de

tábuas, um colchão de embarque, uma banca e cadeira de ninho e um

pequeno pacote de roupa, colocado no lugar do travesseiro, são a sua

mobília. Sobre a mesa tem um caixote de pau preto, que contém as

88

cartas de Teresa, ramilhetes secos, os seus manuscritos do cárcere de

Viseu e um avental de Mariana, o último com que ela, no dia do

julgamento, enxugara as lágrimas e arrancara de si no primeiro instante

de demência.

Simão relê as cartas de Teresa, abre os envoltórios de papel que

encerram as flores ressequidas, contempla o avental de linho,

procurando esvaídos vestígios das lágrimas. Depois, encosta a face e o

peito aos ferros da sua janela, e avista os horizontes boleados pela

serras de Valongo e Gralheira, e cortados pelas ribas pitorescas de Gaia,

do Candal, de Oliveira e do mosteiro da Serra-do-Pilar. ~ um dia lindo,

Refletem-se do azul do céu os mil matizes da primavera. Tem aromas o

ar, e a viração fugitiva dos jardins derrama no éter as aromas que

roubou aos canteiros, Aquela indefinida alegria, que parece reluzir nas

legiões de espírito que se geram ao sol de março, rejubila a natureza

que, toda pompa de luz e flores, se está namorando do calor que a vai

fecundando.

Dia de amor e de esperanças era aquele que o Senhor mandava à choça

escravada na garganta da serra, ao palácio esplendoroso que

reverberava ao Sol os seus espiráculos, ao opulento que passeava as

ruas moles equipagens, bafejado pelo respiro acre das sarças, e ao

mendigo que desentorpecia os membros encostado às colunas dos

templos.

E Simão Botelho, fugindo a claridade da luz e o voejar das aves,

meditando, chorava e escrevia assim as suas meditações:

"O pão do trabalho de cada dia e o teu seio para repousar uma hora a

face, pura de manchas: não pedi mais ao céu.

Achei-me homem aos dezesseis anos. Vi a virtude à luz do teu amor.

Cuidei que era santa a paixão que. absorvia todas as outras, ou as

depurava com o seu fogo sagrado.

Nunca os meus pensamentos foram denegridos por um desejo que eu

não possa confessar alto diante de todo o mundo. Diz tu, Teresa, se os

meus lábios profanaram a pureza de teus ouvidos. Pergunta a Deus

quando quis eu fazer do meu amor o teu opróbrio.

Nunca, Teresa! Nunca, 6 mundo que me condenas!

Se teu pai quisesse que eu me arrastasse a seus pés para te merecer,

beijar-lhe-ia. Se tu me mandasses morrer para te não privar de ser feliz

com outro homem, morreria, Teresa!

Mas tu eras sozinha e infeliz, e eu cuidei que o teu algoz não devia

sobreviver-te. Eis-me aqui homicida, e sem remorsos. A insânia do

crime aturde a consciência; não a minha, que se não temia das escadas

da forca, nos dias em que o meu despertar era sempre o

estrebuxamento da sufocação.

Eu esperava a cada hora o chamamento para o oratório, e dizia comigo:

falarei a Jesus Cristo.

89

Sem pavor, premeditava nas setenta horas dessa agonia moral, e

antevia consolações que o crime não ousa esperar sem injúria da justiça

de Deus.

Mas chorava por ti, Teresa! O travor do meu cálix tinha sobre a

amargura as mil amarguras das tuas lágrimas.

Gemias aos meus ouvidos, mártir! Ver-me-ias sacudindo nas convulsões

da morte, em teus delírios. A mesma morte tem horror da suprema

desgraça. Tarde morrerias, A minha imagem, em vez de te acenar com

a palma de martírios, te seria um fantasma levando das tábuas dum

cadafalso.

Que morte a tua, ó minha santa amiga!"

E prosseguiu até ao momento em que João da Cruz, com ordem do

intendente geral da polícia, entrou no quarto.

- Aqui! - exclamou Simão, abraçando-o. - E Mariana? Deixou-a

sozinha?! Morta, talvez!

- Nem sozinha, nem morta, fidalgo! O diabo nem sempre está atrás da

porta... Mariana voltou ao seu juízo.

- Fala verdade, senhor João?

- Pudera mentir!... Aquilo foi coisa de bruxaria, enquanto a mim...

Sangrias, sedenhos, água fria na cabeça, e exorcismos do missionário,

não lhe digo nada, a rapariga está escorreita, e, assim que tiver um

todo-nada de forças, bota-se ao caminho.

- Bendito seja Deus! - exclamou Simão.

- Amém - acrescentou o ferrador. - Então que arranjo é este de casa?

Que breca de tarimba é esta?! Quer-se aqui uma cama de gente, e

alguma coisa em que um cristão se possa sentar,

- Isto assim está excelente.

- Bem vejo... E de barriga? Como vamos nós de trincadeira?

- Ainda tenho dinheiro, meu amigo.

- Há de ter muito, não tem dúvida; mas eu tenho mais, e vossa

senhoria tem ordem franca. Veja lá esse papel.

Simão leu uma carta de D. Rita Preciosa, escrita ao ferrador, em que o

autorizava a socorrer seu filho com as necessárias despesas,

prontificando-se a pagar todas as ordens que lhe fossem apresentadas

com a sua assinatura.

- É justo - disse Simão, restituindo a carta - porque eu devo ter uma

legitima.

- Então já vê que não tem mais do que pedir por boca. Eu vou comprarlhe

arranjos...

- Abra-me o seu nobre coração para outro serviço mais valioso - atalhou

o preso.

- Diga lá, fidalgo.

Simão pediu-lhe a entrega de uma carta em Monchique a Teresa de

Albuquerque.

90

- O berzabum parece-me que as arma! - disse o ferrador. - Venha de lá

a carta. O pai dela está cá. Já sabia?

- Não.

- Pois está; e, se o diabo o traz à minha beira, não sei se lhe darei com

a cabeça numa, já me lembrou de o esperar no caminho e pendurá-lo

pelo gasnete no galho dum sobreiro. . . A carta tem resposta?

- Se lha derem, meu bom amigo.

Chegou o ferrador a Monchique, a tempo que um oficial da justiça, dois

médicos e Tadeu de Albuquerque entravam no pátio do convento.

Falou o azuazíl à prelada, exigindo em nome do juiz de fora que dois

médicos entrassem no convento a examinar a doente D. Teresa

Clementina de Albuquerque, a requerimento de seu pai.

Perguntou a prelada aos médicos se eles tinham a necessária licença

eclesiástica para entrarem em Monchique. À resposta negativa redargüiu

a abadessa que as portas do convento não se abriam. Disseram os

médicos de Tadeu de Albuquerque que era aquele o estilo dos

mosteiros, e não houve que redargüir à rigorosa prelada.

Saíram, e o ferrador só então refletiu no modo de entregar a carta. A

primeira idéia pareceu-lhe a melhor. Chegou ao ralo, e disse:

- Ó senhora freira!

- Que quer vossemecê? - disse a prelada.

- A senhora faz favor de dizer à senhora D. Teresinha de Viseu, que está

aqui o pai daquela rapariga da aldeia que ela sabe?

- E quem é vossemecê?

- Sou o pai da tal rapariga que ela sabe.

- Já sei! - exclamou de dentro a voz de Teresa, correndo ao locutório.

A prelada retirou-se a um lado, e disse:

- Vê lá o que fazes, minha filha...

- A sua filha escreveu-me? - disse Teresa ao João da Cruz.

- Sim, senhora, aqui está a carta.

E depositou na roda a carta em que a abadessa reparou, e disse,

sorrindo:

- Muito engenhoso é o amor, Teresinha... Permita Deus que as noticias

da rapariga da aldeia te alegrem o coração; mas olha, filhinha, não

cuides que a tua velha tia é menos esperta que o pai da rapariga da

aldeia.

Teresa respondeu com beijos às jovialidades carinhosas da santa

senhora, e sumiu-se a ler a carta, e a responder-lhe. Entregando a

resposta, disse ela ao ferrador:

- Não vê ai sentada naquela escadinha uma pobre?

- Vejo, sim, senhora, e conheço-a. Como diabo veio para aqui esta

mulher? Cuide que depois da esfrega que lhe deu o hortelão, a

pobrezinha não tinha pernas que a cá trouxessem! A mulher pelos

modos tem fibras daquela casta!

91

- Fale baixo - tornou Teresa. - Pois olhe... quando trouxer as cartas,

entregue-lhe a ela, sim? Eu já a mandei à cadeia; mas não a deixaram

lá entrar.

- Bem está, e o arranjo não é mau assim. Fique com Deus, menina.

Esta boa nova alegrou Simão. A providência divina apiedara-se dele

naquele dia. O restaurar-se o juízo de Mariana e a possibilidade de

corresponder-se com Teresa eram as máximas alegrias que podiam

baixar do céu ao seu cerrado infortúnio.

Exaltara-se Simão em graças a Deus, na presença de João da Cruz, que

arrumava, no quarto, uns móveis que comprara em segunda mão,

quando este, suspendendo o trabalho, exclamou:

- Então vou-lhe dizer outra coisa, que não tinha tenção de lhe dizer,

para o apanhar de súpeto.

- Que é?

- A minha Mariana veio comigo, e ficou na estalagem porque não se

podia bulir com dores; mas amanhã ela cá está para lhe fazer a cozinha

e varrer a casa.

Simão, reconcentrando o indefinível sentimento que esta noticia lhe

causara, disse com melancólica pausa:

- É, pois, certo que a minha má estréia arrasta a sua desgraçada filha a

todos os meus abismos! Pobre anjo de caridade, que digna tu és do céu!

- Que está o senhor ai a pregar? - interrompeu o ferrador. - Parece que

ficou a modo de tristonho com a notícia!...

- Senhor João - tornou solenemente o preso - não deixe aqui a sua

querida filha. Deixe-me ver, traga-a consigo uma vez a esta casa; mas

não a deixe cá, porque eu não posso tolher o destino de Mariana. Como

há de ela viver no Porto, sozinha, sem conhecer ninguém, bela como ela

é, e perseguida como tem de ser?!

- Perseguida! Tó carocha! Não que ela é mesmo de se lhe dar que a

persigam!... Que vão para lá, mas que deixem as ventas em casa. Meu

amigo, as mulheres são como as pêras verdes: um homem apalpa-as, e,

se o dedo acha duro, deixa-as, e não as come. É como é. A rapariga sai

à mãe. Minha mulher, que Deus haja, quando eu lhe andava rentanto,

dei-lhe um dia um beliscão numa perna. E vai ela põe-se direita comigo,

e deu-me dois cascudos nas trombas, que ainda agora os sinto. A

Mariana!... Aquilo é d'a pele de Satanás! Pergunte o senhor, se algum

dia falar com aquele fidalguinho Mendes, de Viseu, a troçada que ele

levou com as rédias da égua, só por lhe bulir na chinela quando ela

estava em cima da burra!

Simão sorriu ao rasgado penegírico da bravura da moça, e orgulhou-se

secretamente dos brandos afagos com que ela o desvelara em oito

meses de quase continuada convivência.

- E vossemecê há de privar-se da companhia de sua filha? - insistiu o

preso.

92

- Eu lá me arranjarei como puder. Tenho uma cunhada velha, e levo-a

para mim para me arranjar o caldo. E vossa senhoria pouco tempo aqui

estará... O senhor corregedor lá anda a tratar de o pôr na rua, e que o

senhor sai, cá para mim são favas contadas. E assim com'assim, viu

dizer-lhe tudo duma feita: a rapariga, se eu a não deixasse vir para o

Porto, dava um estouro como uma castanha. Olhe que eu não sou tolo,

fidalgo. Que ela tem paixão d'alma por vossa senhoria, isto; tão certo

como eu ser João. É a sua sina; que hei de eu fazer-lhe? Deixá-la, que

pelo senhor Simão não lhe há de vir mal, ou então já não há honra

neste mundo.

Simão lançou-se aos braços do ferrador, exclamando:

- Pudesse eu ser o marido de sua filha, meu nobre amigo!

- Qual marido!... - disse o ferrador com os olhos vidrados das primeiras

lágrimas que Simão lhe vira - Eu nunca me lembrei disso, nem ela!... Eu

sei que sou um ferrador, e ela sabe que pode ser sua criada, e mais

nada, senhor Simão; mas... sabe que mais? Eu desejo que os meus

amigos sejam desgraçados como havia de ser o senhor se casasse com

a pobre rapariga! Não falemos nisto, que eu por milagre choro; mas,

quando pego a chorar, sou um chafariz... Vamos ao arranjo: a mesa

deve aqui ficar; a cômoda ali; duas cadeiras deste lado, e duas daquele.

A barra acolá. O baú debaixo da cama. A bacia e a bilha da água sobre

esta coisa, que não sei como se chama. Os lençóis e o mais bragal temnos

lá a rapariga. Amanhã é que o quarto há de ficar que nem uma

capela. Olhe que a Mariana já me disse que comprasse duas aquelas...

Como se chamam aquelas envasilhas de pôr ramos?

- Jarras.

- E como diz, duas jarras para flores; mas eu não sei onde se vende

isso. Agora vou buscar o jantar, que a moça há de cuidar que me não

deixar sair da cadeia. Ainda lhe não disse que não me deixaram cá

entrar ontem à tarde; mas eu, como trouxe uma cartinha de sua mãe

para um senhor desembargador, fui onde a ele, e hoje de manhã já lá

tinha na estalagem a ordem do senhor intendente geral da policia. Até

logo.

XVI

Um incidente agora me ocorre, não muito concertado com o seguimento

da história, mas a propósito vindo para demonstrar uma face da índole

do ex-corregedor de Viseu, já então exonerado do cargo.

Sabido é que Manuel Botelho, o primogênito. voltando a freqüentar

matemáticas em Coimbra, fugira dali para Espanha com uma dama

desleal a seu marido, estudante açoreano que cursava medicina.

93

Um ano demorara na Corunha Manuel Botelho com a fugitiva.

alimentando-se dos recursos que sua mãe, extremosa por ele, lhe

remetia, vendendo a pouco e pouco as suas jóias, e privando as filhas

dos adornos próprios dos anos e da qualidade.

Secaram-se estas fontes, e não restavam outras. D. Rita disse afinal ao

filho que deixara de socorrer Simão por não ter meios; e agora das

escassas economias que fazia nada podia enviar-lhe porque estava em

obrigação de pagar os alimentos de Simão à pessoa que por compaixão

lhos dera em Viseu, e lhos estava dando no Porto. Ajuntava ela, para

consolação do filho, que viesse ele para Vila-Real, e trouxesse consigo a

infeliz senhora; que fosse ele para casa, e a deixasse a ela numa

estalagem até se lhe arranjar habitação; que o ensejo era oportuno por

estar na quinta de Montezelos o pai, quase divorciado da família.

Voltou pelo Minho Manuel Botelho, e chegou com a dama ao Porto,

quinze dias depois que Simão entrara no cárcere.

Já noutro ponto deixamos dito que nunca os dois irmãos se deram, nem

estimaram; mas o infortúnio de Simão remia as culpas do gênio fatal

que o orfanara de pai e mãe, e só da irmã Rita lhe deixara uma

lembrança saudosa.

Foi Manuel à cadeia, e, abrindo os braços ao irmão. teve um glacial

acolhimento.

Perguntou-lhe Manuel a história do seu desastre,

- Consta do processo - respondeu Simão.

- E tem o mano esperanças de liberdade? - replicou Manuel.

- Não penso nisso.

- Eu pouco posso oferecer-lhe, porque vou para casa forçado pela falta

de recursos; mas, se precisa de roupa, repartirei consigo da minha.

- Não preciso nada, Esmolas só as recebo daquela mulher.

Já Manuel tinha reparado em Mariana, e da beleza da moça inferira

conclusões para formar falsos juízos.

- E quem é esta menina? - tornou Manuel.

- É um anjo... Não lhe sei dizer mais nada.

Mariana sorriu-se, e disse:

- Sou uma criada do senhor Simão e de vossa senhoria.

- E cá do Porto?

- Nã0, meu senhor, seu dos arrabaldes de Viseu.

- E tem feito sempre companhia a meu mano?

Simão atalhou assim à resposta balbuciante de Mariana:

- A sua curiosidade incomoda-me, mano Manuel,

- Cuidei que não era ofensiva - replicou o outro, tomando o chapéu. -

Quer alguma coisa para a mãe?

- Nada.

94

Estando Manuel Botelho, na tarde desse dia, fechando as malas para

seguir jornada para Vila-Real, foi visitado pelo desembargador Mourão

Mosqueira e pelo corregedor do crime.

- Devemos à espionagem da polícia - disse o corregedor - a novidade de

estar nesta estalagem um filho do meu antigo amigo, condiscípulo e

colega Domingos Correia Botelho. Aqui vimos dar-lhe um abraço e

oferecer o nosso préstimo. Esta senhora é sua esposa? - continuou o

magistrado, reparando na açoreana.

- Não é minha esposa... - balbuciou Manuel - é... minha irmã.

- Sua irmã... - disse Mosqueira - qual das três? Há cinco anos que as vi

em Viseu, e grande mudança fez esta senhora, que não me recordo das

suas feições absolutamente coisa nenhuma. E a senhora D. Ana Amália?

- Justamente - disse Manuel.

- Bela lhe afirmo eu que está, minha senhora; mas fez-se um rosto

muito outro do que era!...

- Vieram ver o infeliz Simão? - atalhou o corregedor.

- Sim, senhor... viemos ver meu pobre irmão.

- Foi um raio que caiu na família aquele rapaz!... -ajuntou Mosqueira -

mas pode estar na certeza que a sentença não se executa; diga a sua

mãe que mo ouviu da minha boca. O meu tribunal está preparando para

lhe minorar a pena em dez anos de degredo para a Índia, e seu pai.

segundo me disse na passagem para Vila-Real, já preparou as coisas na

suplicação e no desembargo do paço, não obstante o morto ter lá

parentes poderosos nas duas instâncias. Quiséramos absolvê-lo e

restituí-lo à sua família; mas tanto é impossível. Simão matou, e

confessa soberbamente que matou. Não consente mesmo que se diga

que em defesa o fez. É um doido desgraçado com sentimentos

nobilíssimos! Chovem cartas de empenho a favor do Albuquerque.

Pedem a cabeça do pobre rapaz com uma sem-cerimônia que indigna o

ânimo.

- E essa menina que foi a causa da desgraça? - perguntou Manuel.

- Isso é uma heroína! - respondeu o corregedor do crime, - Davam-na

já por morta quando Simão chegou aqui. Desde que soube das

probabilidades da comutação da pena, deu um pontapé na morte, e está

salva, segundo me disse o médico.

- Conhece-a muito bem, minha senhora? - disse o desembargador à

dama, suposta irmã de Manuel.

- Muito bem - respondeu ela, relaceando os olhos ao amante.

- Dizem que é formosíssima!

- Decerto - acudiu Manuel - é formosíssima!

- Muito bem - disse o corregedor, erguendo-se. - Leve este abraço ao

pai, e diga-lhe que o condiscípulo cá está leal e dedicado como sempre.

Eu tenho de lhe escrever brevemente.

- E outro abraço a sua virtuosa, mãe - acrescentou o desembargador.

95

- Vou desconfiado! - disse o Mosqueira ao colega. - Manuel Botelho

tinha, há coisa de um ano, fugido para Espanha com uma senhora

casada. Aquela mulher que vimos não é irmã dele.

- Pois, se nos mentiu, é patife, por nos obrigar a cortejar uma

concubina!... Eu me informarei... - disse o corregedor, ofendido no seu

austero pundonor.

E no próximo correio, escrevendo a Domingos Botelho, dizia no período

final "Tive o gosto de conhecer teu filho Manuel e uma de tuas filhas;

por ele te mandei um abraço, e por ela te mandaria outro, se fosse

moda ensinarem velhos a meninas bonitas como se dão os abraços nos

pais".

Estava já Manuel em casa, e cuidava em trajar uma modesta casa para

a açoreana, auxiliado por sua bondosa e indulgente mãe. Domingos

Botelho fora informado da vinda, e dissera que não queria ver o filho,

avisando-o de que era considerado desertor de cavalaria seis desde que

abandonara os estudos, onde estava com licença.

Recebeu depois a carta do corregedor do crime, e mandou imediata e

secretamente devassar se em Vila-Real estava a senhora que indicava a

carta. A espionagem deu-a como certa na estalagem, enquanto Manuel

Botelho cuidava nos adornos de uma casa. Escreveu o magistrado ao

juiz de fora, e este mandou chamar à sua presença a mulher suspeita, e

ouviu dela a sua história sincera e lacrimosamente contada. Condoeu-se

o juiz, e revelou ao colega as suas averiguações, Domingos Botelho foi a

Vila-Real, e hospedou-se em casa do juiz de fora, onde a senhora foi

novamente chamada, sendo que ao mesmo tempo o general da

província lavrava ordem de prisão para o cadete desertor de cavalaria

de Bragança.

A açoreana, em vez do juiz, encontrou um feio homem, de carrancuda

sambra, e aparência de intenções sinistras.

- Eu sou pai de Manuel - disse Domingos Botelho. Sei a história da

senhora. O infame é ele. Vossa senhoria é a vítima. O castigo da

senhora principiou desde o momento em que a sua consciência lhe disse

que praticou uma ação indigna. Se a consciência lho não disse ainda, ela

lho dirá. Donde é?

- Da ilha do Faial - respondeu trêmula a dama.

- Tem família?

- Tenho mãe e irmãs.

- Sua mãe aceita-la-ia, se a senhora lhe pedisse abrigo?

- Creio que sim.

- Sabe que Manuel é um desertor, que a estas horas está preso ou

fugitivo?

- Não sabia...

- Quer isto dizer que a senhora não tem proteção de alguém...

A pobre mulher soluçava, abafada por ânsias, e debulhada em lágrimas.

96

- Por que não vai para sua mãe?

- Não tenho recursos alguns - respondeu ela.

- Quer partir hoje mesmo? A porta da estalagem. daqui a pouco,

encontrará uma liteira e uma criada para acompanhá-la até ao Porto. Lá

entregará uma carta. A pessoa a quem escrevo lhe cuidará da passagem

para Lisboa. Em Lisboa outra pessoa a levará a bordo da primeira

embarcação que sair para os Açores. Estamos combinados? Aceita?

- E beijo as mãos de vossa senhoria... Uma desgraçada como eu não

podia esperar tanta caridade.

Poucas horas depois. a esposa do médico...

- Que tinha morrido de paixão e vergonha talvez! - exclama uma leitora

sensível.

- Não, minha senhora; o estudante continuava nesse ano a freqüentar a

Universidade; e, como tinha já vasta instrução em patologia, poupou-se

à morte da vergonha. que é uma morte inventada pelo visconde de A.

Garrett no Fr. Luiz de Sousa, e à morte da paixão. que é outra morte

inventada pelos namorados nas cartas despeitosas, e que não pega nos

maridos a quem o século dotou de uns longes de filosofia, filosofia grega

e romana, porque bem sabem que os filósofos da Antigüidade davam

por mimo as mulheres aos seus amigos, quando os seus amigos por

favor lhas não tiravam, E esta filosofia hoje então...(6)

Pois o médico não morreu, nem sequer desmedrou, ou levou R

significativo de preocupação do ânimo, insensível às amenidades da

terapêutica.

A esposa, inquestionavelmente muito mais alquebrada e valetudinária

que seu esposo, lavada em pranto, morta de saudades, sem futuro, sem

esperanças, sem voz humana que a consolasse, entrou na liteira, e

chegou ao Porto, onde procurou o corregedor do crime para entregarlhe

uma carta do doutor Domingos Botelho. Um período desta carta

dizia assim:

"Deste-me a noticia duma filha que eu não conhecia, nem conheço. A

mãe desta senhora está no Faial, para onde ela vai. Cuida tu, ou manda

cuidar no seu transporte para Lisboa, e encarrega ali alguém de correr

com a passagem dela para os Açores no primeiro navio. A mim me

darás conta das despesas. Meu filho Manuel teve ao menos a virtude de

não matar ninguém para se constituir amante. Do modo como correm

os tempos, muito virtuoso é o rapaz que não mata o marido da mulher

que ama. Vê se consegues do general, que está ai, perdão para o rapaz,

que é desertor da cavalaria seis, e me consta que está escondido em

casa dum parente. Enquanto a Simão, creio que não é possível salvá-lo

do degredo temporário... É uma lança em África livrá-lo da forca. Em

Lisboa movem-se grandes potências contra o desgraçado, e eu estou

mal visto do intendente geral por abandonar o lugar... etc.".

97

Partiu para Lisboa a açoreana, e dali para a sua terra, e para o abrigo de

sua mãe, que a julgara morta, e lhe deu anos de vida, se não ditosa,

sossegada e desiludida de quimeras.

Manuel Botelho, obtido o perdão pela preponderância do corregedor do

crime, mudou de regimento para Lisboa, e ai permaneceu até que,

falecido seu pai, pediu a baixa e voltou à província.

XVII

João da Cruz, no dia 4 de agosto de 1805, sentou-se à mesa com triste

aspecto e nenhum apetite do almoço.

- Não comes, João? - disse-lhe a cunhada.

- Não passa daqui o bocado - respondeu ele, pondo o dedo nos

gorgomilos.

- Que tens tu?

- Tenho saudades da rapariga... Dava agora tudo quando tenho para a

ver aqui ao pé de mim, com aqueles olhos que pareciam ir direito aos

desgostos que um homem tem no seu interior. Mal hajam as desgraças

da minha vida, que ma fizeram perder, Deus sabe se para pouco, se

para sempre!... Se eu não tivesse dado o tiro no almocreve, não vinha a

ficar em obrigação ao corregedor, e não se me dava que o filho vivesse

ou morresse...

- Mas, se tens saudades - atalhou a senhora Josefa - manda buscar a

rapariga, tem-na cá algum tempo, e torna depois para onde ao senhor

Simão.

- Isso não é de homem que põe navalha na cara, Josefa. O rapaz, se ela

lhe falta, morre de pasmo dentro daqueles ferros. Isto é veneta que me

deu hoje... Sabes que mais? Leve a breca o dinheiro! Amanhã vou ao

Porto.

- Pois isso é o que deves fazer.

- Está dito. Quem cá ficar que o ganhe. Vão-se os anéis e fiquem os

dedos. Por ora, tem-se resistido a tudo com o meu braço. A rapariga, se

ficar com menos, lá se avenha. Assim o quer, assim o tenha.

Reanimou-se a fisionomia do mestre ferrador, e como que os empeços

da garganta se iam removendo à medida que planizava a sua ida ao

Porto.

Acabara de almoçar, e ficara cismático, encostado à mesa do escano.

- Ainda estás malucando?! - tornou Josefa.

- Parece coisa do demônio, mulher!... A rapariga estará doente ou

morta?

98

- Anjo bento da Santíssima Trindade! - exclamou a cunhada, erguendo

as mãos - que dizes tu, João?

- Estou cá por dentro negro como aquela sertã!

- Isso é flato, homem! Vai tomar ar; trabalha um poucochinho para

espaireceres.

João da Cruz passou ao coberto onde tinha o armário da ferragem e a

bigorna, e começou a atarracar cravos.

Alguns conhecidos tinham passados, palavreando com ele consoante

costumavam, e achavam-no taciturno e nada para graças.

- Que tens tu, João? - dizia um.

- Não tenho nada. Vai à tua vida e deixa-me, que não estou para lérias.

Outro parava e dizia:

- Guarde-o Deus, senhor João.

- E a vossemecê também. Que novidade há?

- Não sei nada.

- Pois então vá com Nossa Senhora, que eu estou cá de candeias às

avessas.

O ferrador largava o martelo; sentava-se aos poucos no tronco, e

coçava a cabeça com frenesi. Depois recomeçava novamente, e tão

alheado o fazia, que estragava o cravo, ou martelava os dedos.

- Isto é coisa do diabo! - exclamou ele; e foi à cozinha procurar a

pichorra, que emborcou como qualquer elegante de paixões etéreas se

aturde com absinto. - Hei de afogar-te, coisa má, que me estás

apertando a alma! - continuou o ferrador, sacudindo os braços, e

batendo o pé no soalho.

Voltou ao coberto a tempo que um viandante ia passando sobre a sua

possante mula. Envolvia-se o cavaleiro num amplo capote à moda

espanhola, sem embargo da calma que fazia. Viam-se-lhe as botas de

couro cru, com esporas amarelas afiveladas, e o chapéu derrubado

sobre os olhos.

- Ora viva! - disse o passageiro.

- Viva! - respondeu mestre João, relaceando os olhos pelas quatro patas

da mula, a ver se tinha obra em que entreter o espírito - A mula é de

rópia e chibança!

- Não é má. Vossemecê é que é o senhor João da Cruz?

- Para o servir.

- Venho aqui pagar-lhe uma dívida.

- A mim? O senhor não me deve nada, que eu saiba.

- Não sou eu que devo; é meu pai, e ele que me encarregou de lhe

pagar.

- E quem é seu pai?

- Meu pai era um recoveiro de Carção, chamado Bento Machado.

99

Proferida metade destas palavras, o cavalheiro afastou rapidamente as

bandas do capote e desfechou um bacamarte no peito do ferrador. O

ferido recuou, exclamando:

- Mataram-me!... Mariana, não te vejo mais!...

O assassino teria dado cinqüenta passos a todo o galope da espantada

mula, quando João da Cruz, debruçado sobre o banco, arrancava o

último suspiro com a cara posta no chão, donde apontara ao peito do

almocreve dez anos antes.

Os caminheiros, que perpassaram pelo cavaleiro inadvertidamente,

ajuntaram-se em redor do cadáver. Josefa acudiu ao estrondo do tiro, e

já não ouviu as últimas palavras de seu cunhado. Quis transportá-lo

para dentro e correr a chamar cirurgião; mas um cirurgião estava no

ajuntamento, e declarou morto o homem.

- Quem o matou? - exclamavam trinta vozes a um tempo.

Nesse mesmo dia vieram justiça de Viseu lavrar auto e devassar:

nenhum indício lhes deu o fio do misterioso assassínio. O escrivão dos

órfãos inventariou os objetos encontrados, e fechou as portas quando os

sinos corriam o derradeiro dobre ao cair da lousa sobre João da Cruz.

Deus terá descontado nos instintos sanguinários do teu temperamento a

nobreza de tua alma! Pensando nas incoerências da tua índole, homem

que me explicas a providência, assombram-me as caprichosas antíteses

que a mão de Deus infunde em alentos na criatura. Dorme o teu sono

infinito, se nenhum outro tribunal te cita a responder pelas vidas que

tiraste, e pelo uso que fizeste da tua. Mas, se há estância de castigo e

de misericórdia, as lágrimas de tua filha terão sido, na presença do Juiz

Supremo, os teus merecimentos.

Fez Josefa escrever a Mariana, noticiando-lhe a morte de seu pai, mas

sobrescritou a carta a Simão Botelho, para maior segurança. Estava

Mariana no quarto do preso, quando a carta lhe foi entregue.

- Não conheço a letra, Mariana... E a obreia é preta...

Mariana examinou o sobrescrito, e empalideceu.

- Eu conheço a letra - disse ela - é do Joaquim da loja. Abra, depressa,

senhor Simão... Meu pai morreria?

- Que lembrança! Pois não teve há três dias carta dele?... E não disse

que estava bom?

- Isso que tem?... Veja quem assina.

Simão buscou a assinatura, e disse:

- Josefa Maria!... É a tua tia que lhe escreve.

- Leia... leia... Que diz ela? Deixe-me ler a mim...

O preso lia mentalmente, e Mariana instou:

- Leia alto, por quem é, senhor Simão, que estou a tremer... e vossa

senhoria descora... Que é, meu Deus?

Simão deixou cair a carta, e sentou-se prostrado de ânimo. Mariana

correu a levantar a carta, e ele, tomando-lhe a mão, murmurou:

100

- Pobre amigo!... Choremo-lo ambos... choremo-lo, Mariana, que o

amávamos como filhos...

- Pois morreu? - bradou ela.

- Morreu... mataram-no!...

A moça expediu um grito estrídulo, e foi com o rosto contra os ferros

das grades. Simão inclinou-a para o seio, e disse-lhe com muita ternura

e veemência:

- Mariana, lembre-se que é o meu amparo. Lembre-se de que as últimas

palavras de seu pai deviam ser recomendar-lhe o desgraçado que

recebe das tuas mãos benfeitoras o pão da vida. Mariana, minha querida

irmã, vença a dor, que pode matá-la, e vença-a por amor de mim.

Ouve-me, amiga da minha alma?

Mariana exclamou:

- Deixe-me chorar, por caridade!... Ai! meu Deus, se eu torno a

endoidecer!

- Que seria de mim! - A quem deixaria Mariana o seu nobre coração

para me suavizar este martírio? Quem me levaria ao desterro uma

palavra amiga que me animasse a crer em Deus? Não há de

enlouquecer, Mariana, porque eu sei que me estima, que me ama, e que

afrontará com coragem a maior desgraça que ainda pode sugerir-me o

inferno! Chore, minha irmã, chore: mas veja-me através das suas

lágrimas!

XVII

Mariana, decorridos dias, foi a Viseu recolher a herança paterna Em

proporção com o seu nascimento, bem dotada a deixara o laborioso

ferrador. Afora os campos, cujo rendimento bastaria para a sustentação

dela, Mariana levantou a laje conhecida da lareira e achou os

quatrocentos mil réis com que João da Cruz contava para alimentar as

regalias de sua decrepitude inerte. Vendeu Mariana as terras, e deixou a

casa a sua tia, que nascera nela, e onde seu pai casara.

Liquidada a herança, tornou para o Porto, e depositou o seu cabedal nas

mãos de Simão Botelho, dizendo que receava ser roubada na casinha

em que vivia, fronteira à Relação, na Rua de S. Bento.

- Por que vendeu as suas terras, Mariana? - perguntou o preso.

- Vendi-as, porque não faço tenção de lá voltar.

- Não faz?... Para onde há de ir, Mariana, indo eu degredado? Fica no

Porto?

- Não, senhor, não fico - balbuciou ela como admirada desta pergunta, à

qual o seu coração julgava ter respondido de muito.

- Pois não?!

101

- Vou para o degredo, se vossa senhoria me quiser na sua companhia.

Fingindo-se surpreendido, Simão seria ridículo aos seus próprios olhos.

- Esperava essa resposta, Mariana, e sabia que não me dava outra. Mas

sabe o que é o degredo, minha amiga?

- Tenho ouvido dizer muitas vezes o que é, senhor Simão... É uma terra

mais quente que a nossa; mas também há lá pão, e vive-se...

- E morre-se abrasado ao sol doentio daquele céu morre-se de saudades

da pátria, morre-se muitas vezes dos maus tratos dos governadores das

galés, que têm um condenado na conta de fera.

- Não há de ser tanto assim. Eu tenho perguntado muito por isso à

mulher dum preso, que cumpriu dez anos de sentença na Índia, e viveu

muito bem em uma terra chamada Solor, onde teve uma tenda; e, se

não fossem as saudades, diz ela que não vinha, porque lhe corria

melhor por lá a vida que por cá. Eu, se for por vontade do Senhor

Simão, vou pôr uma lojinha também. Verá como eu amanho a vida.

Afeita ao calor estou eu; vossa senhoria não está; mas não há de ter

precisão, se Deus quiser, de andar ao tempo.

- E suponha, Mariana, que eu morro apenas chegar ao degredo?

- Não falemos nisso, senhor Simão...

- Falemos, minha amiga, porque eu hei de sentir à hora da morte, a

pesar-me na alma, a responsabilidade do seu destino... Seu eu morrer?

- Se o senhor morrer, eu saberei morrer também.

- Ninguém morre quando quer, Mariana...

- Oh! se morre!... E vive também quando quer... Não mo disse já a

senhora D. Teresa?

- Que lhe disse ela?

- Que estava a passar quando vossa senhoria chegou ao Porto, e que a

sua chegada lhe dera vida. Pois há muita gente assim, senhor Simão...

E mais a fidalga é fraquinha, e eu sou mulher do campo, vezada a todos

os trabalhos; e, se fosse preciso meter uma lanceta no braço e deixar

correr o sangue até morrer, fazia-o como quem o diz.

- Ouça-me, Mariana que espera de mim?

- Que hei de eu esperar!... Por que me diz isso o senhor Simão?

- Os sacrifícios que Mariana tem feito e quer fazer por mim só podiam

ter uma paga, embora mos não faça esperando recompensa. Abre-me o

seu coração, Mariana?

- Que quer que eu lhe diga?

- Conhece a minha vida tão bem como eu, não é verdade?

- Conheço. E que tem isso?

- Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte àquela desgraçada

senhora?

- E dai? Quem lhe diz menos disso?!

- Os sentimentos do coração só os posso agradecer com amizade.

- Eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?!

102

- Nada me pediu, Mariana; mas obriga-me tanto, que me faz mais infeliz

o peso da obrigação.

Mariana não respondeu; chorou.

- E por que chora? - tornou Simão carinhosamente.

- Isso é ingratidão... e eu não mereço que me diga que o faço infeliz.

- Não me compreendeu... Sou infeliz por não poder fazê-la minha

mulher. Eu queria que Mariana pudesse dizer:

- "Sacrifiquei-me por meu marido; no dia em que o vi ferido em casa de

meu pai, velei as noites a seu lado; quando a desgraça o encerrou entre

ferros, dei-lhe o pão que nem seus ricos pais lhe davam; quando o vi

sentenciado à forca, endoideci; quando a luz da minha razão me tornou

num raio de compaixão divina, corri ao segundo cárcere, alimentei-o,

vesti-o, e adornei-lhe as paredes nuas do seu antro; quando o

desterraram, acompanhei-o, fiz-me a pátria daquele pobre coração,

trabalhei à luz do sol homicida para ele se resguardar do clima, do

trabalho, e do desamparo, que o matariam..."

O espírito de Mariana não podia altear-se à expressão do preso; mas o

coração adivinhava-lhe as idéias. E a pobre moça sorria e chorava a um

tempo. Simão continuou:

- Tem vinte e seis anos, Mariana. Viva, que esta sua existência não pode

ser senão um suplício oculto. Viva, que não deve dar tudo a quem lhe

não pode restituir senão as lágrimas que eu lhe tenho custado. O tempo

do meu desterro não pode estar longe; esperar outro melhor destino

seria uma locura. Se eu ficasse na pátria, livre ou preso, pediria a minha

irmã que completasse a obra generosa da sua compaixão, esperando

que eu lhe desse a última palavra da minha vida. Mas não vá comigo à

África ou à Índia, que sei que voltará sozinha à pátria depois que eu

fechar os olhos. Se o meu degredo for temporário, e a morte me

guardar para maiores naufrágios, voltarei à pátria um dia. É preciso que

Mariana aqui esteja para eu poder dizer que venho para a minha família,

que tenho aqui uma alma extremosa que me espera. Se a encontrar

com marido e filhos, a sua extremosa família será a minha. Se a vir livre

e só, irei para a companhia de minha irmã. Que me responde, Mariana?

A filha de João da Cruz, erguendo os olhos do pavimento. disse:

- Eu verei o que hei de fazer quando o senhor Simão partir para o

degredo...

- Pense desde já, Mariana.

- Não tenho que pensar... A minha tenção está feita...

- Fale, minha amiga; diga qual é a sua tenção.

Mariana hesitou alguns segundos, e respondeu serenamente:

- Quando eu vir que não lhe sou precisa, acabo com a vida. Cuida que

eu ponho muito em me matar? Não tenho pai, não tenho ninguém, a

minha vida não faz falta a pessoa nenhuma. O senhor Simão pode viver

sem mim? Paciência!... Eu é que não posso...

103

Susteve o complemento da idéia como quem se peja duma ousadia. O

preso apertou-a nos braços estremecidamente, e disse:

- Irá, irá comigo, minha irmã. Pense muito no infortúnio de nós ambos

d'ora em diante, que ele é comum; é um veneno que havemos de tragar

unidos, e lá teremos uma sepultura de terra tão pesada como a da

pátria.

Desde este dia, um secreto júbilo endoidecia o coração de Mariana. Não

inventemos maravilhas de abnegação. Era de mulher o coração de

Mariana. Amava como a fantasia se compraz de idear o amor duns anjos

que batem as asas de baile em baile, e apenas quedam o tempo preciso

para se fazerem ver e adorar a um reflexo de poesia apaixonada.

Amava, e tinha ciúmes de Teresa, não ciúmes que se refrigeram na

expansão ou no despeito, mas infernos surdos, que não rompiam em

labareda aos lábios, porque os olhos se abriam prontos em lágrimas

para apagá-la. Sonhava com as delícias do desterro, porque voz

humana alguma não iria lá gemer à cabeceira do desgraçado. Se a

forçassem a resignar a sua inglória missão de irmã daquele homem,

resigna-la-ia, dizendo: - "Ninguém lhe adoçará as penas tão

desinteresseiramente como o eu fiz".

E, contudo, nunca vacilou em aceitar da mão de Teresa ou da mendiga

as cartas para Simão. A cada vinco de dor que a leitura daquelas cartas

sulcava na fronte do preso, Mariana, que o espreitava disfarçada, tremia

em todas as fibras do seu coração, e dizia entre si: - "Para que há de

aquela senhora amargurar-lhe a vida?"

E amargurava acerbamente a desditosa menina!

Ressurgiram naquela alma esperanças, que não deviam durar além do

tempo necessário para que a desilusão lhe acrisolasse o infortúnio.

Imaginara ela a liberdade, o perdão, o casamento, a ventura, a coroa do

seu martírio. As suas amigas matizavam-lhe a tela da fantasia, umas

porque não conheciam a atroz realidade das coisas, outras porque

fiavam em demasia nas orações das virtuosas do mosteiros. Se os

vaticínios das profetisas se realizassem, Simão sairia da cadeia, Tadeu

de Albuquerque morreria de velhice e de raiva, o casamento seria um

ato indisputável, e o céu dos desgraçados principiaria neste mundo.

Porém, Simão Botelho, ao cabo de cinco meses de cárcere, já sabia o

seu destino, e achara útil prevenir Teresa, para não sucumbir ao

inevitável golpe da separação. Bem queria ele alumiar com esperanças a

perspectiva negra do desterro; mas froixos e frios eram os alívios em

que não era parte a convicção nem o sentimento. Teresa não podia

sequer iludir-se, porque tinha no peito um despertador que a estava

acordando sempre para a hora final, embora o semblante enganasse a

condolência dos estranhos.

E, então, era o expandir-se em lástimas nas cartas que escrevia ao seu

amigo; invocações a Deus, e sacrílegas apóstrofes ao destino;

104

branduras de paciência e ímpetos de cólera contra o pai; o aferro à vida

que lhe foge, e súplicas à morte.

No termo de sete meses o tribunal de segunda instância comutou a

pena última em dez anos de degredo para a Índia. Tadeu de

Albuquerque acompanhou a Lisboa a apelação, e ofereceu a sua casa a

quem mantivesse de pé a forca de Simão Botelho. O pai do condenado,

segundo assustador aviso que seu filho Manuel lhe dera, foi para Lisboa

lutar com o dinheiro e as poderosas influências que Tadeu de

Albuquerque granjeara na Casa da Suplicação e no Desembargo do

Paço. Venceu Domingos Botelho, e, instigado mais do seu capricho que

do amor paternal, alcançou do Príncipe Regente a graça de cumprir o

condenado a sua sentença na prisão de Vila-Real.

Quando intimaram a Simão Botelho a decisão do recurso e a graça do

Regente, o preso respondeu que não aceitava a graça; que queria a

liberdade do degredo; que protestaria perante os poderes judiciários

contra um favor que não implorava e que reputava mais atroz do que a

morte.

Domingos Botelho, avisado da rejeição do filho, respondeu que fizesse

ele a sua vontade; mas que a sua vitória dele sobre os protetores e os

corrompidos pelo ouro do fidalgo de Viseu estava plenamente obtida.

Foi aviso ao intendente geral da polícia, e o nome de Simão Botelho foi

inscrito no catálogo dos degredados para a Índia.

XIX

A verdade é algumas vezes o escolho de um romance.

Na vida real, recebemo-la como ela sai dos encontrados casos, ou da

lógica implacável das coisas; mas, na novela, custa-nos a sofrer que o

autor, se inventa, não invente melhor; e, se copia, não minta por amor

da arte.

Um romance que estriba na verdade o seu merecimento é frio, é

impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos, nem a gente,

sequer uma temporada, enquanto ele nos lembra, deste jogo de nora,

cujos alcatruzes somos, uns a subir, outros a descer, movidos pela

manivela do egoísmo.

A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público!?

A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de

ferro que o prendem ao barro doente saiu, ou pesam nele e o

submergem no charco da culpa primitiva, para que é emergi-lo, retratálo

e pô-lo à venda!?

Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois que eu

perdi o meu a estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é pintála

como ela é feia e repugnante.

105

A desgraça afervora ou quebranta o amor?

Isto é que eu submeto à decisão do leitor inteligente. Fatos e não teses

é o que eu trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as

funções ópticas do aparelho visual.

Ao cabo de dezenove meses de cárcere, Simão Botelho almejava um

raio de Sol, uma lufada do ar não coada pelos ferros, o pavimento do

céu, que o da abóbada do seu cubículo pesava-lhe o peito.

Ânsia de viver era a sua; não era já ânsia de amar.

Seis meses de sobressaltos diante da forca deviam distender-lhe as

fibras do coração; e o coração, para o amor, quer-se forte e tenso, de

uma certa rijeza, que se ganha com o bom sangue, com os anseios das

esperanças, e com as alegrias. que o enchem e reforçam para os

reveses.

Caiu a forca pavorosa aos olhos de Simão; mas os pulsos ficaram em

ferros, o pulmão ao ar mortal das cadeias, o espírito entanguido no

glacial estupidez dumas paredes salitrosas, e dum pavimento que ressoa

os derradeiros passos do último padecente, e dum teto que filtra a

morte a gotas de água.

O que é o coração, o coração dos dezoito anos, o coração sem

remorsos, o espírito anelante de glórias, ao cabo de dezoito meses de

estagnação da vida?

O coração é a víscera, ferida de paralisia, a primeira que falece sufocada

pela rebeliões da alma que se identifica à natureza, e a quer, e se

devora na ânsia dela, e se estorce nas agonias da amputação, para os

quais a saudade da ventura extinta é um cautério em brasa; e o amor,

que leva ao abismo pelo caminho da sonhada felicidade, não é sequer

um refrigério.

Ao deslaçar da garganta a corda da justiça, Simão Botelho teve uma

hora de desafogo, como que sentia o patíbulo lascar entre os seus

braços, e então convidou o coração da mulher que o perdera a assistir

às segundas núpcias da sua vida com a esperança.

Depois, a passo igual, a esperança fugia-lhe para as areias da Ásia, e o

coração intumescia-se de fel, o amor afogava-se nele. morte inevitável,

quando não há abertura por onde a esperança entre a luzir na escuridão

íntima.

Esperança para Simão Botelho, qual?

A Índia, a humilhação, a miséria, a indigência.

E os anelos daquela alma tinham mirado as ambições de um nome. Para

a felicidade do amor envidava as forças do talento; mas, além do amor,

estava a glória, o renome e a vã imortalidade, que só não é demência

nas grandes almas e nos gênios que se sentem previver nas gerações

vindouras.

Mas grinaldas de amor a escorrerem sangue dos espinhos, essas

infiltram veneno corrosivo no pensamento, apagam no seio a faísca das

106

nobres afoitezas, apoucam a idéia que abrangera mundos, e paralisam

de mortal espasmo o coração.

Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito meses de cárcere, com o

patíbulo ou o degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o

melhor da alma.

A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava

responder, retraía-se, recriminado pelos ditames da razão.

De além, daquele convento onde outra existência agonizava, gementes

queixas te vinham espremer fel na chaga; e tu, que não sabias nem

podias consolar, pedias palavras ao anjo da compaixão para ela, e as do

demônio do desespero para ti.

Os dez anos de ferros em que lhe quiseram minorar a pena, eram-lhe

mais horrorosos que o patíbulo. E aceita-los-ia, porventura, se amasse o

céu, onde Teresa bebia o ar, que nos pulmões se lhe formava em

peçonha? Creio: - antes a masmorra, onde pode ouvir-se o som abafado

de uma voz amiga; antes os paroxismos de dez anos sobre as lajes

úmidas de uma enxovia, se, na hora extrema, a última faísca da paixão,

ao bruxulear para morrer, nos alumia o caminho do céu por onde o anjo

do amor desditoso se levantou a dar conta de si a Deus, e a pedir a

alma do que ficou.

Teresa pedira a Simão Botelho que aceitasse dez anos de cadeia, e

esperasse ai a sua redenção por ela.

"Dez anos! - dizia-lhe a enclausurada de Monchique. Em dez anos terá

morrido meu pai e eu serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe,

se não tiveres cumprido a sentença. Se vais ao degredo, para sempre te

perdi, Simão, porque morrerás, ou não acharás memória de mim,

quando voltares".

Como a pobre se iludia nas horas em que as débeis forças de vida se lhe

concentravam no coração!

As ânsias, a lividez, o deperecimento tinham voltado. O sangue, que

criara novo, já lhe saía em golfadas com a tosse.

Se por amor ou piedade o condenado aceitasse os ferrolhos três mil

seiscentas e cinqüenta vezes corridos sobre as suas longas noites

solitárias, nem assim Teresa susteria a pedra sepulcral que a vergava de

hora a hora.

"Não esperes nada, mártir - escrevia-lhe ele. - A luta com a desgraça é

inútil, e eu não posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro.

Não temos nada neste mundo, Caminhemos ao encontro da morte... Há

um segredo que só no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos?

Vou. Abomino a pátria, abomino a minha família; todo este solo está aos

meus olhos coberto de forcas, e quantos homens falam a minha língua,

creio que os ouço vociferar as imprecações do carrasco. Em Portugal,

nem a liberdade com a opulência; nem já agora a realização das

esperanças que me dava o teu amor, Teresa!

107

Esquece-te de mim, e adormece no seio do nada. Eu quero morrer, mas

não aqui. Apague-se a luz dos meus olhos; mas a luz do céu, quero-a!

Quero ver o céu no meu último olhar!

Não me peças que aceite dez anos de prisão. Tu não sabes o que é a

liberdade cativa dez anos! Não compreendes a tortura dos meus vinte

meses. A voz única que tenho ouvido é a da mulher piedosa que me

esmola o pão de cada dia, e a do aguazil que veio dar-me a sarcástica

boa-nova de uma graça real, que me comuta o morrer instantâneo da

forca pelas agonias de dez anos de cárcere.

Salva-te, se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande

desgraçado. Se teu pai te chama, vai. Se tem de renascer para ti uma

aurora de paz, vive para a felicidade desse dia. E, se não, morre,

Teresa, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as fibras

laceradas pela dor, é o esquecimento que salva das injúrias a memória

dos padecentes".

As palavras únicas de Teresa, em resposta àquela carta, significativa da

turbação do infeliz, foram estas: "Morrerei, Simão, morrerei. Perdoa tu

ao meu destino... Perdi-te... Bem sabes que sorte eu queria dar-te... e

morro, porque não posso, nem poderei jamais resgatar-te. Se podes,

viva; não te peço que morras, Simão; quero que vivas para me

chorares. Consolar-te-á o meu espírito... Estou tranqüila. Vejo a aurora

da paz... Adeus, até ao céu, Simão".

Seguiram-se a esta carta muitos dias de terrível taciturnidade. Simão

Botelho não respondia às perguntas de Mariana, Di-lo-íeis arroubado

nas voluptuosas angústias do seu próprio aniquilamento. A criatura

posta por Deus ao lado daqueles dezoito anos tão atribulados chorava;

mas as lágrimas, se Simão as via, tiravam-no da mudez sossegada para

ímpetos de aflição, que afinal o extenuavam..

Decorreram seis meses ainda.

E Teresa vivia, dizendo às suas consternadas companheiras que sabia

ao certo o dia do seu trespasse.

Duas primaveras via Simão Botelho pelas grades do seu cárcere. A

terceira já enflorava as hortas, e esverdeava as florestas do Candal.

Era em março de 1807.

No dia 10 desse mês, recebeu o condenado intimação para sair na

primeira embarcação que levava âncora do Douro para a Índia. Nesse

tempo vinham aqui os navios buscar os degredados, e recebiam em

Lisboa os que tinham igual destino.

Nenhum estorvo impedia o embarque de Mariana, que se apresentou ao

corregedor do crime como criada do degredado, com passagem paga

por seu amo.

- E a passagem vale-a bem! - disse o galhofeiro magistrado.

Simão assistiu ao encaixotar da sua bagagem, numa quietação terrível,

como se ignorasse o seu destino.

108

Quis muitas vezes escrever a derradeira carta à moribunda Teresa, e

nem sinais de lágrimas podia já enviar-lhe no papel.

- Que trevas, meu Deus! - exclamava ele, e arrancava a mãos cheias os

cabelos. - Dai-me lágrimas, Senhor! Deixai-me chorar, ou matai-me,

que este sofrimento e insuportável!

Mariana contemplava estarrecida estes e outros lances de loucura, ou os

não menos medonhos da letargia.

- E Teresa! - bradava ele, surgindo subitamente do seu espasmo. - E

aquela infeliz menina que eu matei! Não hei de vê-la mais, nunca mais!

Ninguém me levará ao degredo a noticia de sua morte! E, quando a eu

chamar para que me veja morrer digno dela, quem te dirá que eu morri,

ó mártir?!

A 17 de março de 1807, saiu dos cárceres da Relação Simão Antônio

Botelho, e embarcou no cais da Ribeira, com setenta e cinco

companheiros. O filho do ex-corregedor de Viseu, a pedido do

desembargador Mourão Mosqueira, e por ordem do regedor das justiça,

não ia amarrado com cordas ao braço de algum companheiro. Desceu

da cadeia ao embarque, ao lado de um meirinho, e seguido de Mariana,

que vigiava os caixões da bagagem. O magistrado, fiel amigo de D. Rita

Preciosa, foi a bordo da nau, e recomendou ao comandante que

distinguisse o condenado Simão, consentindo-o na tolda, e sentando-o à

sua mesa. Chamou Simão de parte, e deu-lhe um cartucho de dinheiro

em ouro, que sua mãe lhe enviava. Simão Botelho aceitou o dinheiro, e,

na presença de Mourão Mosqueira. pediu ao comandante que fizesse

distribuir pelos seus companheiros de degredo o dinheiro que lhe dava.

- É demente o senhor Simão?! - disse o desembargador.

- Tenho a demência da dignidade: por amor da minha dignidade me

perdi; quero agora ver a que extremo de infortúnio ela pode levar os

seus amantes. A caridade só me não humilha quando parte do coração e

não do dever. Não conheço a pessoa que me remeteu esse dinheiro.

- É sua mãe - tornou Mosqueira.

- Não tenho mãe. Quer vossa excelência remeter-lhe esta esmola

rejeitada?

- Não, senhor.

- Então, senhor comandante, cumpra o que lhe peço, ou eu atiro com

isto ao rio.

O Comandante aceitou o dinheiro, e o desembargador saiu de bordo

como espantado da sinistra condição do moço.

- Onde é Monchique? - perguntou Simão a Mariana.

- É acolá, senhor Simão - respondeu. indicando-lhe o mosteiro, que se

debruça sobre a margem do Douro, em Miragaia.

Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um

vulto (7),

Era Teresa.

109

Na véspera recebera ela o adeus de Simão, e respondera enviando-lhe a

trança dos seus cabelos.

Ao anoitecer daquele dia, pediu Teresa os sacramentos, e comungou à

grade do coro, onde se foi amparada à sua criada, Parte das horas da

noite passou-as sentada ao pé do santuário de sua tia, que toda a noite

orou, Algumas vezes pediu que a levassem à janela que se abria para o

mar, e não sentia ali a frialdade da viração. Conversava serenamente

com as freiras, e despedira-se de todas, uma a uma, indo por seu pé às

celas das senhoras entrevadas para lhes dar o beijo da despedida.

Todas cuidavam em reanimá-la, e Teresa sorria, sem responder aos

piedosos artifícios com que as boas almas a si mesmas queriam simular

esperanças. Ao abrir da manhã, Teresa leu uma a uma a cartas de

Simão Botelho. As que tinham sido escritas nas margens do Mondego

enterneciam-na a copiosas lágrimas. Eram hinos à felicidade prevista:

eram tudo que mais formoso pode dar o coração humano quando a

poesia da paixão dá cor ao pensamento, e uma formosa e inspirativa

natureza lhe empresta os seus esmaltes, Então lhe acudiam vivas

reminiscências daqueles dias: a sua alegria doida, as suas doces

tristezas, esperanças a desveneceram saudades, os mudos colóquios

com a irmã querida de Simão, o céu aromático que se lhe alargava à

inspiração sôfrega de vagos desejos, tudo, enfim, que lembra a

desgraçados.

Emaçou depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de

raminhos de flores murchas, que Simão, dois anos antes, lhe atirara da

sua janela ao quarto dela.

As pétalas das flores soltas quase todas se desfizeram, e Teresa,

contemplando-as, disse: - "Como a minha vida..." - e chorou, beijando

os cálices desfolhados das primeiras que recebeu.

Deu as cartas a Constança, e encarregou-a de uma ordem, a respeito

delas, que logo veremos cumprida.

Depois foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo reclinado

sobre uma cadeira. Erguendo-se, quase tirada pela violência, aceitou

uma xícara de caldo, e murmurou com um sorriso: - "Para a viagem..."

As nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse ao

mirante, e, sentando-se em ânsias mortais, nunca mais desfitou os

olhos da nau, que já estava verga alta, esperando a leva dos

degredados.

Quando viu, a dois a dois, entrarem, amarrados, no tombadilho, os

condenados, Teresa teve um breve acidente, em que a já frouxa

claridade dos olhos se lhe apagou, e as mãos conclusas pareciam querer

aferrar a luz fugitiva.

Foi então que Simão Botelho a viu.

E ao mesmo tempo atracou à nau um bote em que vinha a pobre de

Viseu, chamando Simão. Foi ele ao portaló, e, estendendo o braço à

110

mendiga, recebeu o pacotinho das suas cartas. Reconheceu ele que a

primeira não era sua, pela lisura do papel, mas não a abriu.

Ouviu-se a voz de levar âncora e largar amarras. Simão encostou-se à

amurada da nau, com os olhos fitos no mirante.

Viu agitar-se um lenço, e ele respondeu com o seu àquele aceno.

Desceu a nau ao mar, e passou fronteira ao convento. Distintamente

Simão viu um rosto e uns braços suspensos das reixas de ferro; mas

não era de Teresa aquele rosto: seria antes um cadáver que subiu da

claustra ao mirante, com os ossos da cara inçados ainda das herpes da

sepultura.

- É Teresa? - perguntou Simão a Mariana.

- É, senhor, é ela - disse num afogado gemido a generosa criatura,

ouvindo o seu coração dizer-lhe que a alma do condenado iria breve no

seguimento daquela por quem se perdera.

De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu

Simão um movimento impetuoso de alguns braços e o desaparecimento

de Teresa e do vulto de Constança, que ele divisara mais tarde.

A nau parou defronte de Sobreiras. Uma nuvem no horizonte da barra, e

o súbito encapelamento das ondas causara a suspensão da viagem

anunciada pelo comandante. Em seguida, velejou da Foz uma catraia

com o piloto-mor, que mandava lançar ferro até novas ordens. Mais

tarde adiou-se a saída para o dia seguinte.

E, no entanto, 5imáo Botelho, como o cadáver embalsamado, cujos

olhos artificiais rebrilham cravados num ponto, lá tinha os seus imersos

na interior escuridade do miradouro. Nenhum sinal de vida. E as horas

passaram até que o derradeiro raio de Sol se apagou nas grades do

mosteiro.

Ao escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou, com os

olhos embaciados de lágrimas. o desterrado, que contemplava as

primeiras estrelas, iminentes ao mirante,

- Procura-a no céu? - disse o nauta.

- Se a procuro no céu... - repetiu maquinalmente Simão.

- Sim!... No céu deve ela estar.

- Quem, senhor?

- Teresa.

- Teresa...! Morreu?!

- Morreu, além, no mirante, donde ela estava acenando.

Simão curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente. O

comandante lançou-lhe os braços, e disse:

- Coragem, grande desgraçado, coragem! Os homens do mar crêem em

Deus! Espere que o céu se abra para si pelas súplicas daquele anjo!

Mariana estava um passo atrás de Simão, e tinha as mãos erguidas.

111

- Acabou-se tudo!... - murmurou Simão. – Eis me livre... para a morte...

Senhor comandante - continuou ele energicamente - eu não me suicido.

Pode deixar-me.

- Peço-lhe que se recolha à câmara. O seu beliche está ao pé do meu.

- É obrigatório recolher-me?

- Para vossa senhoria não há obrigações; há rogos: peço-lhe, não

mando.

- Vou, e agradeço a compaixão.

Mariana seguiu-o com aquele olhar quebrado e mavioso do Jau, quando

o poeta desembarcava, segundo a idéia apaixonada do cantor de

Camões.

Encarou nela Simão, e disse ao comandante:

- E esta infeliz?

- Que o siga... - respondeu o compassivo homem do mar, que cria em

Deus.

Simão recolheu-se ao beliche, e o comandante sentou-se em frente

dele, e Mariana ficou no escuro da câmara a chorar.

- Fale, senhor Simão! - disse o comandante - desafogue e chore.

- Chorei, senhor!

- Eu não tinha imaginado uma angústia igual à sua. A invenção humana

não criou ainda um quadro tão atroz. Arrepiam-me os cabelos, e tenho

visto espetáculos horríveis na terra e no mar.

Acintemente, o comandante estava provocando Simão ao desabafo. Não

respondia o condenado. Ouvia os soluços de Mariana, e tinha os olhos

postos no maço das Cartas, que pusera sobre uma banqueta.

O capitão prosseguiu:

- Quando em Miragaia me contaram a morte daquela senhora, pedi a

uma pessoa relacionada no convento que me levasse a ouvir de alguma

freira a triste história. Uma religiosa ma contou; mas eram mais os

gemidos que as palavras. Soube que ela, quando descíamos na altura

do Oiro, proferia em alta voz: - "Simão, adeus até à eternidade!" - E

caiu nos braços duma criada. A criada gritou, e outras foram ao mirante,

e a trouxeram meia-morta para baixo, ou morta, melhor direi, que

nenhuma palavra mais lhe ouviram. Depois, contaram-me o que ela

penara em dois anos e nove meses naquele mosteiro; o amor que ela

lhe tinha, e as mil mortes que ali padeceu, de cada vez que a esperança

lhe morria. Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor é!

- Por pouco tempo... - disse Simão, como se o dissesse a si próprio, ou

a própria imaginação estivesse dialogando consigo.

- Creio, creio, por pouco tempo - prosseguiu o capitão - mas, se os

amigos pudessem salvá-lo, senhor, eu da-los-ia na Índia mais fiéis que

em Portugal. Prometo-lhe, sob a minha palavra de honra, alcançar do

vice-rei a sua residência em Goa. Prometo segurar-lhe um decente

principio de vida e as comodidades que fazem a existência tão saudável

112

como ela é na Ásia. Não o intimide a idéia do degredo, senhor Simão.

Viva, faça por vencer-se, e será feliz!

- O seu silêncio, por piedade, senhor... - atalhou o degredado.

- Bem sei que é cedo ainda para planizar futuros. Desculpe à simpatia

que me inspira a indiscrição, mas aceite um amigo nesta hora

atribulada.

- Aceito, e preciso dele... Mariana! - Chamou Simão. - Venha aqui, se

este cavalheiro o permite.

Mariana entrou no quarto.

- Esta mulher tem sido a minha providência - disse Simão. - Porque ela

me valeu, não senti a fome em dois anos e nove meses de cárcere.

Tudo que tinha vendeu para me sustentar e vestir. Aqui vai comigo esta

criatura. Seja respeitável ao seus olhos, senhor, porque ela é tão pura

como a verdade o deve ser nos lábios dum moribundo. Se eu morrer,

senhor comandante, aceite o legado de a amparar com a sua caridade

como se ela fosse minha irmã. Se ela quiser voltar à sua pátria, seja o

seu protetor na passagem. - E, estendendo-lhe a mão, disse com

transporte: - Promete-me isto, senhor?

- Juro-lhe.

O comandante, obrigado a subir ao tombadilho, deixou Simão com

Mariana.

- Estou tranqüilo pelo seu futuro, minha amiga.

- Eu já o estava, senhor Simão - respondeu ela.

Não se trocam palavras por largo espaço. Simão apoiou a face sobre a

mesa, e apertou com as mãos as fontes arquejantes. Mariana, de pé, ao

lado dele, fitava os olhos na luz mortiça da lâmpada oscilante, e

cismava, como ele, na morte.

E o nordeste sibilava, como um gemido, nas gáveas da nau.

CONCLUSÃO

As onze horas da noite, o comandante recolhera-se num beliche de

passageiro, e Mariana, sentada no pavimento, com o rosto sobre os

joelhos, parecia sucumbir ao quebranto das trabalhosas e aflitivas horas

daquele dia.

Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os braços cruzados

sobre o peito, e os olhos fitos na luz que balançava, pendente de um

arame. O ouvido tê-lo-ia, talvez, atento a um assobio da ventania: devia

de soar-lhe como um ai plangente aquele silvo agudo, voz única no

silêncio da terra e céu.

A meia-noite, estendeu Simão o braço trêmulo ao maço das cartas que

Teresa lhe enviara, e contemplou um pouco a que estava ao de cima,

113

que era dela. Rompeu a obreia, e dispôs-se no camarote para alcançar o

baço clarão da lâmpada.

Dizia assim a carta:

"É já o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A tua

pobre Teresa, à hora em que leres esta carta, se Deus não me engana,

está em descanso.

Eu devia poupar-te a esta última tortura; não devia escrever-te; mas

perdoa à tua esposa do céu a culpa, pela consolação que sinto em

conversar contigo a esta hora, hora final da noite da minha vida,

Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma, Simão? Daqui a

pouco. perderás de vista este mosteiro; correrás milhares de léguas, e

não acharás, em parte alguma do mundo, voz humana que te diga:

- A infeliz espera-te noutro mundo, e pede ao Senhor que te resgate. -

Se te pudesses iludir, meu amigo, quererias antes pensar que eu ficava

com a vida e com esperança de ver-te na volta do degredo? Assim pode

ser, mas, ainda agora, neste solene momento, me domina a vontade de

fazer-te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade

tem às vezes vaidade de mostrar que o é, até não podê-lo ser mais!

Quero que digas: - Está morta, e morreu quando eu lhe tirei a última

esperança. -

- Isto não é queixar-me, Simão: não é. Talvez, que eu pudesse resistir

alguns dias à morte, se tu ficasses; mas, de um modo ou de outro, era

inevitável fechar os olhos quando se rompesse o último fio, este último

que se está partindo, e eu mesma o ouço partir.

Não vão estas palavras acrescentar a tua pena. Deus me livre de

ajuntar um remorso injusto à tua saudade.

Se eu pudesse ainda ver-te feliz neste mundo; se Deus permitisse à

minha alma esta visão!... Feliz, tu, meu pobre condenado!... Sem o

querer, o meu amor agora te fazia injúria, julgando-te capaz de

felicidade! Tu morrerás de saudade, se o clima do desterro te não matar

ainda antes de sucumbires à dor do espírito.

A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como tu ma pintavas nas

tuas cartas, que li há pouco! Estou vendo a casinha que tu descrevias

defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves. A tua

imaginação passeava comigo às margens do Mondego, à hora pensativa

do escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu

respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada por teu

sorriso, inclinava a face ao teu seio, como se fosse ao de minha mãe.

Tudo isto li nas tuas cartas; e parece que cessa o despedaçar da agonia

enquanto a alma se está recordando. Noutra carta, me falavas em

triunfos e glórias e imortalidade do teu nome. Também eu ia após da

tua aspiração, ou adiante dela, porque o maior quinhão dos teus

prazeres de espírito queria eu que fosse meu. Era criança há três anos,

Simão, e já entendia os teus anelos de glória, e imaginava-os realizados

114

como obra minha, se tu me dizias, como disseste muitas vezes, que não

serias nada sem o estimulo do meu amor.

Ó Simão, de que céu tão lindo caímos! A hora que te escrevo, tu estás

para entrar na nau dos degredados, e eu na sepultura.

Que importa morrer, se não podemos jamais ter nesta vida a nossa

esperança de há três anos? Poderias tu com a desesperança e com a

vida, Simão? Eu não podia. Os instantes do dormir eram os escassos

benefícios que Deus me concedia; a morte é mais que uma necessidade,

é uma misericórdia divina, uma bem-aventurança para mim.

E que farias tu da vida sem a tua companheira de martírio? Onde tu irás

aviventar o coração que a desgraça te esmagou, sem o esquecimento da

imagem desta dócil mulher, que seguiu cegamente a estrela da tua

malfadada sorte?!

Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se

uma vez visses passar rapidamente a minha sombra por diante dos teus

olhos enxutos? Sofre, sofre ao coração da tua amiga estas derradeiras

perguntas, a que tu responderás, no alto mar, quando esta carta leres.

Rompe a manhã. Vou ver a minha última aurora... a última dos meus

dezoito anos!

Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre de uma agonia

longa. Todas as minhas angústias lhe ofereço em desconto das tuas

culpas. Se algumas impaciências a justiça divina me condena, oferece tu

a Deus, meu amigo, os teus padecimentos, para que eu seja perdoada.

Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão!"

Ergueu-se o degredado, olhou em redor de si e fitou com espasmo

Mariana, que levantava a cabeça ao menor movimento dele.

- Que tem, senhor Simão? - disse ela, erguendo-se.

- Estava aqui, Mariana?... Não se vai deitar?!

- Não vou; o comandante deu-me licença de ficar aqui.

- Mas há de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque não é

necessário o seu sacrifício.

- Se o não incomodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.

- Esteja, minha amiga, esteja... Poderei subir ao convés?

- Quer ir ao convés, senhor Botelho? - disse o comandante, lançando-se

do beliche.

- Queria, senhor comandante.

- Iremos juntos.

Simão ajuntou a carta de Teresa ao maço das suas, e saiu

cambaleando. No convés sentou-se num monte de cordame, e

contemplou o mirante do Manchique, que avultava negro ao sopé da

serra penhascosa em que atualmente vai a Rua da Restauração.

O capitão passeava da proa à ré, mas com o ouvido fito aos movimentos

do degredado. Receara ele o propósito do suicídio, porque Mariana lhe

incutira semelhante suspeita.

115

Queria o marítimo falar-lhe palavras consoladoras, mas pensava

consigo: - "O que há de dizer-se a um homem que sofre assim?" - E

parava junto dele algumas vezes, como para desviar-lhe o espírito

daquele mirante.

- Eu não me suicido! - exclamou abruptamente Simão Botelho. - Se a

sua generosidade, senhor capitão. se interessa em que eu viva, pode

dormir descansado a sua noite, que eu não me suicido.

- Mas mereço-lhe eu a condescendência de descer comigo à câmara?

- Irei; mas eu, lá, sofro mais, senhor.

Não replicou o comandante, e continuou a passear no convés apesar das

rajadas de vento.

Mariana estava agachada entre os pacotes da carga, a pouca distância

de Simão. O comandante viu-a, falou-lhe, e retirou-se.

As três horas da manhã, Simão Botelho segurou entre as mãos a testa,

que se lhe abria abrasada pela febre. Não pôde ter-se sentado, e deixou

cair o meio corpo. A cabeça, ao declinar, pousou no seio de Mariana.

- O Anjo da compaixão sempre comigo! - murmurou ele, - Teresa foi

muito desgraçada...

- Quer descer ao camarote? - disse ela.

- Não poderei... Ampare-me, minha irmã.

Deu alguns passos para a escadinha, e olhou ainda sobre o mirante.

Desceu a íngreme escada, apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o

colchão, e pediu água que bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o

estarcimento, e as ânsias, com intervalo de delírio.

De manhã veio a bordo um facultativo, por convite do capitão.

Examinando o condenado, disse que era febre maligna a doença, e bem

podia ser que ele achasse a sepultura no caminho da Índia.

Mariana ouviu o prognóstico, e não chorou.

As onze horas saiu barra fora a nau. As ânsias da doença acresceram as

do enjôo. A pedido do comandante, Simão bebia remédios, que bolsava

logo, revoltos pelas contrações do vômito.

Ao segundo dia de viagem, Mariana disse a Simão:

- Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer àquelas cartas que vão na

caixa?

Pasmosa serenidade a desta pergunta!

- Se eu morrer no mar - disse ele - Mariana, atire ao mar todos os meus

papéis, todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro

também.

Passada uma ânsia, que lhe embargava a voz, Simão continuou:

- Se eu morrer, que tenciona fazer, Mariana?

- Morrerei, senhor Simão.

- Morrerás?!... Tanta gente desgraçada que eu fiz!...

A febre aumentava. Os sintomas da morte eram visíveis aos olhos do

capitão, que tinha sobeja experiência de ver morrerem centenares de

116

condenados, feridos da febre no mar, e desprovidos de algum

medicamento.

Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de Cascais,

sobreveio tormenta súbita. O navio fez-se ao largo muitas milhas, e,

perdido o rumo de Lisboa, navegou desnorteado. Ao sexto dia de

navegação incerta, por entre espessas brumas, partiu-se o leme

defronte de Gibraltar. E, em seguida ao desastre, aplacaram as

refregas, desencapelaram-se as ondas, e nasceu, com a aurora do dia

seguinte, um formoso dia de primavera. Era o dia de primavera. Era o

dia 27 de março, o nono da enfermidade de Simão Botelho.

Mariana tinha envelhecido. O comandante, encarando nela, exclamou:

- Parece que volta da índia com os dez anos de trabalhos já passados!...

- Já acabados... de certo... - disse ela.

Ao anoitecer desse dia o condenado delirou pela última vez, e dizia

assim no seu delírio:

"A casinha, defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves.

Passeavas comigo à margem do Mondego, à hora pensativa do

escurecer. Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu

respondia com a mudez do coração ao teu silêncio, e, animada por teu

sorriso, inclinada a face ao teu seio, como se fosse o de minha mãe...

De que céu tão lindo caímos!... A tua amiga morreu... A tua pobre

Teresa..."

"E que farias tu da vida, sem a tua companheira de martírio?... Onde

irás tu aviventar o coração que a desgraça te esmagou?!... Rompe a

manhã... Vou ver a minha última aurora... a última dos meus dezoito

anos. Oferece a Deus os teus padecimentos, para que eu seja

perdoado... Mariana..."

Mariana colocou os ouvidos aos lábios roxos do moribundo, quando

cuidou ouvir o seu nome.

"Tu virás ter conosco; ser-te-emos irmãos no céu... O mais puro anjo

serás tu... se és deste mundo, irmã; se és deste mundo, Mariana..."

A transição do delírio para a letargia completa era o anúncio infalível do

trespasse.

Ao romper da manhã apagara-se a lâmpada. Mariana saíra a pedir luz, e

ouvira um gemido estertoroso. Voltando às escuras, com os braços

estendidos para tatear a face do agonizante, encontrou a mão convulsa,

que lhe apertou uma das suas, e relaxou de súbito a pressão dos dedos.

Entrou o comandante com uma lâmpada, e aproximou-lha da

respiração, que não embaciou levemente o vidro.

- Está morto! - disse ele.

Mariana curvou-se sobre o cadáver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro

beijo. Ajoelhou depois ao pé do beliche com as mãos erguidas, e não

orava nem chorava.

Algumas horas volvidas, o comandante disse a Mariana:

117

- Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo... É ventura

morrer quando se vem a este mundo com tal estrela. Passe a senhora

Mariana ali para a câmara que vai ser levado daqui o defunto.

Mariana tirou o maço das cartas debaixo do travesseiro, e foi a uma

caixa buscar os papéis de Simão. Atou o rolo no avental, que ele tinha

daquelas lágrimas dela, choradas no dia da sua demência, e cingiu o

embrulho à cintura.

Foi o cadáver envolto num lençol, e transportado ao convés.

Mariana seguiu-o.

D0 porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo lhe atou às

pernas com um pedaço de cabo. O comandante contemplava a cena

triste com os olhos úmidos, e os soldados que guarneciam a nau, tão

funeral respeito os impressionara, que insensivelmente se descobriram.

Mariana estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia

estupidamente encarar aqueles empuxões que o marujo dava ao

cadáver, para segurar a pedra na cintura.

Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o

balanço para o arremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver

se fizesse ouvir na água, todos viram, e ninguém já pôde segurar

Mariana, que se atirara ao mar.

A voz do comandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram

homens para salvar Mariana.

Salvá-la!...

Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir à morte mas para

abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O

comandante olhou para o sítio donde Mariana se atirara, e viu, enleado

no cordame, o avental, e à flor da água, um rolo de papéis, que os

marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondência

de Teresa e Simão.

Da família de Simão Botelho vive ainda, em Vila-Real-de-Trás-os-

Montes, a senhora D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã

predileta dele (8). A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi

Manoel Botelho, pai do autor deste livro.

**********

118

Notas

(1) Há vinte anos que eu ouvi de um coevo do fato a história do

assassínio, assim contada Era em Quinta-feira Santa. Marcos Botelha,

irmão de Domingos, estava na Festa de Endoenças, em São Francisco,

defrontando com uma dama, namorada sua, e desleal dama que ela era.

Noutro ponto da Igreja estava, apontando em olhos e coração á mesma

mulher, um alferes de infantaria. Marcos enfrentou o seu ciúme até ao

final do ofício da Paixão. À saída do templo encarou no militar, e

provocou-o. O alferes tirou da espada, e o fidalgo do espadim. Terçaram

as armas longo tempo sem desaire, nem sangue. Amigos de ambos

tinham conseguido aplacá-los, quando Luís' Botelha, outro irmão de

Marcos, desfechou uma clavina no peito do alferes, e ali, à entrada da

"Rua do Jogo da Bola", o derribou morto. O homicida foi livre por graça

régia.

(2) É a casa-palacete à "Rua da Piedade", hoje pertencente ao Major

Antônio Girardo Monteiro. - (Nota da 1" edição).

(3) Esclarece este dizer de D. Rita a certidão de idade de Simão a qual

tenho presente, e é extraída por Herculano Henrique Garcia Camilo

Galhardo, reitor da real igreja da Senhora da Ajuda, do livro 14, a folhas

159 v. Reza assim:

«Aos dois dias do mês de maio de 1784, pôs os Santos óleos o

reverendo padre cura João Domingues Chaves a Simão, o qual foi

«batizado em casa em perigo de vida» pelo reverendo frei Antônio de S.

Palágio, etc.».

(4) Nalguns papéis que possuímos do corregedor de Viseu achamos esta

carta: "Meu amigo, colega e senhor. Entregará ao portador desta, que é

o senhor padre Manuel de Oliveira, as cinqüenta moedas em que lhe

falei na sua passagem para Lisboa. A apelação de seu filho está a meu

cuidado, e está segura, a pesar das grandes forças contrárias. Seu

amigo - O desembargador Antônio José Dias Mouralo Mosqueira. - Porto,

11 de fevereiro de 1805, Sobrescrito: limo. Sr. Domingos José Botelho

de Mesquita e Meneses - Lisboa."

(Nota do Autor).

119

(5) Este romance foi escrito num dos cubículos-cárceres da Relação do

Porto, a uma luz coada por entre ferros, e abafada pela sombra das

abóbadas. Ano da Graça de 1861.

(6) "Hoje então!..." Vou-lhes contar um lance memorando dum filósofo

da atualidade, lance único pelo qual eu fiquei conhecendo a pessoa.

Hoje (21 de setembro de 1861) estava eu no escritório do ilustre

advogado Joaquim Marcelino de Matos, e um cliente entrou, contando o

seguinte: - "Senhor doutor, eu sou um lojista da rua de...: e fui roubado

em oitocentos mil réis por minha mulher, que fugiu com um amante

para Viena. Venho saber se posso querelar, e receber o meu dinheiro."

Pode querelar, respondeu o advogado, se tiver testemunhas. O senhor

quer querelar por adultério? - Responde o queixoso: "O que eu quero é

o meu dinheiro." - Mas, redargüiu o consultor, o senhor pode querelar

de ambos, dela como adultera, e dele como receptador do furto. - "E

receberei o meu dinheiro?" - Conforme. Eu sei cá se ele tem o seu

dinheiro?! O que é que não pode pronunciá-la a ela como ladra. - "Mas

os meus oitocentos mil réis?!" - Ah! o senhor não se lhe dá que sua

mulher fuja e não volte? - "Não, senhor doutor, que a leve o diabo; o

que eu quero é o meu dinheiro." - Pois querele de ambos, e veremos

depois. "Mas não é certo receber eu O meu dinheiro!?" - Certo não é;

veremos se, depois de pronunciado, as autoridades administrativas

capturam o ladrão com o seu dinheiro. - "E se ele o não tiver já" -

redargüi o marido consternado. - Se o não tiver já, o senhor vinga-se na

querela por adultério. - "E gasta-se alguma coisa?" - Gasta, sim; mas

vinga-se. - "O que eu queria era o meu dinheiro, senhor doutor; a

mulher deixá-la ir, que tem cinqüenta anos". - Cinqüenta anos! - acudiu

o doutor. - O senhor está vingado do amante. Vá para casa, deixe-se de

querelas, que o mais desgraçado é ele.

(7) Quando escrevi este livro, ainda existia o mirante. Agora, lá, ou aí

por perto, está um salão de baile em que dançam nos dias santificados

marujos e as damas correspondentes. - (Nota da 5ª edição).

(8) Morreu em 1872. (Nota da 5ª edição).

***************

120

Camilo Castelo Branco (1825-1890) nasce em

Lisboa no dia 16 de Março, filho ilegítimo de

Manuel Joaquim Botelho e Jacinta Maria.

Frequentou a sociedade portuense, dedicando-se

ao jornalismo, e teve uma vida romanticamente

agitada, desde vários casos amorosos e prisão.

Sentindo-se cego, suicida-se com um tiro na

cabeça na casa de São Miguel de Seide.

Notabilizou-se com várias novelas, uma delas

Amor de Perdição. É um dos maiores escritores

portugueses do século XIX.

Algumas obras: Os Pundonores Desagravados (poema satírico, 1845), O

Juízo Final e O Sonho do Inferno (poema satírico, 1845), Agostinho de

Ceuta (teatro, 1847), A Murraça (sátira, 1848), Maria, não me mates,

que sou tua mãe (novela, 1848), O Marquês de Torres Novas (teatro,

1849), O Caleche (sátira, 1849), O Clero e o sr. Alexandre Herculano

(polémica, 1850), Inspirações (poesia lírica, 1851), Anátema (novela,

1851), Mistérios de Lisboa (novela, 1854), Livro Negro de Padre Dinis

(novela, 1855), Cenas Contemporâneas (1855), A Filha do Arcediago

(novela, 1855), A Neta do Arcediago (novela, 1856), Onde está a

felicidade? (novela, 1856), Um Homem de Brios (novela, 1857), Carlota

Ângela (novela, 1858), O Que fazem Mulheres (novela, 1858), Cenas da

Foz (novela, 1861), O Romance de um Homem Rico (novela, 1861),

Amor de Perdição (novela, 1862), Coração, Cabeça e Estômago (novela,

1862), Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado (novela, 1863), O

Bem e o Mal (novela, 1863), Amor de Salvação (novela, 1864), A Sereia

(novela, 1865), A Queda dum Anjo (novela, 1866), O Judeu (novela,

1866), O Olho de Vidro (novela, 1866), A Bruxa de Monte Córdova

(novela, 1867), A Doida do Candal (novela, 1867), O Retrato de

Ricardina (novela, 1868), Os Brilhantes do Brasileiro (novela, 1869), A

Mulher Fatal (novela, 1870), O Regicida (novela, 1874), A Filha do

Regicida (novela, 1875), A Caveira do Mártir (novela, 1875), Eusébio

Macário (novela, 1879), A Corja (novela, 1880), A Brasileira de Prazins

(novela, 1883), etc.

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